Se calhar, vale a pena referir que Andrew Stanton, o realizador americano responsável pelo novíssimo filme da Pixar, Wall-E, tem apenas 43 anos. Se calhar, só por inveja, vale a pena referir que já ganhou um Óscar pelo filme À Procura de Nemo e que tem lá em casa, além da estatueta faiscante, o Ben e a Audrey, dois filhos nascidos depois de ele ter casado com a namorada que conheceu no liceu. Se calhar, neste ponto do campeonato, já nem sequer vale a pena acrescentar que o senhor leva uma vida de sonho, mais agora que está a trabalhar no seu próximo filme, John Carter of Mars, sobre um jovem imortal criado pelo escritor Edgar Rice Burroughs. Hoje, só vale a pena dizer que Andrew Stanton, barba e cabelo loiro como um aventureiro celta ou viking, está de "jeans" e camisa desportiva no seu estúdio de Oakland, do outro lado da baía de São Francisco. Mais tarde, no restaurante Postrio, senta-se e conversa pelo jantar adentro, simpático, como se não fosse um pai de família preocupado por não estar a passar mais tempo com os filhos. O homem traz notícias, todas boas. Sabe-se, finalmente, o que vai acontecer ao último robô existente na Terra quando os humanos já tiverem fugido. O último robô, chamado Wall-E, vai ser arrumador de lixo durante 700 anos, até que um dia decide abandonar tudo e perseguir a mulher dos seus sonhos, uma navezinha voadora que tem por nome Eve.
Sei que a semente desta história já vem de 1994... A personagem do Wall-E sim, mas não a história.
Como se encaixa bem no tom ambientalista tão próprio dos dias de hoje! Afinal, passaram 14 anos! Pura coincidência. Pode perguntar à minha esposa. A única coisa que faço a favor do ambiente é reciclar. Não sou de grandes causas e não tenho nenhum empenho político dessa natureza. Mas, confrontado com uma história de ficção científica, o tema principal tinha de ser a Humanidade, a sociedade, o futuro. Pois bem, um dos futuros possíveis é a Terra ficar apinhada de lixo. Se o trabalho da pessoa é a recolha do lixo, então temos logo aí uma personagem que não requer mais explicações, porque não se pode ir mais baixo na escala social.
No meio do lixo e do apocalipse, como é que conseguiu dar tanta humanidade ao robô Wall-E? É aqui que entra a planta. Quando o Wall-E encontra aquela planta verde, é como uma metáfora. A planta já nós vimos em muitos sítios, como por exemplo numa ranhura de um passeio de cimento, numa fenda do asfalto, num local onde a vida parece improvável mas onde teima em furar para poder existir. Achei que era a metáfora ideal para explicar o Wall-E, o único objecto com alma, como se fosse algo natural e real a tentar sobreviver num ambiente fabricado pelo Homem. É como se o Wall-E ainda tivesse nele a essência do que é ser e viver. Telefones, computadores, rotinas, hábitos, trabalho, seja qual for a desculpa, a verdade é que já não comunicamos uns com os outros... Para mim, o Wall-E sempre foi uma história de amor. O amor irracional consegue sempre suplantar a vida que foi programada.
Como se decidiram por aquela sequência de abertura, perturbante mas lindíssima, em que a cidade parece pejada de arranha-céus até percebermos que, afinal, são colunas gigantes de lixo amontoado? No início, a ideia era tratar o Wall-E como algo terrivelmente básico: empilhar lixo compactado, da mesma maneira que uma criança brinca com cubos coloridos. Mais tarde, quando fomos fazer pesquisa aos centros de tratamento de lixo, é que nos demos conta de que é mesmo assim que eles operam: esmagam o lixo disponível e alinham os pacotes, como se fossem cubos de feno da agricultura moderna.
Não é, portanto, um filme para crianças com uma mensagem escondida apelando à protecção da Natureza... No que respeita ao público mais jovem, o importante para mim é que as crianças gostem do filme e que achem as personagens divertidas. Em segundo lugar, nem que isso seja só apreendido a um nível instintivo, é importante que percebam que devem falar umas com as outras. Comunicar é o que há de mais importante na vida. Se, pelo caminho, o público mais novo aprender com o filme e tirar dele umas lições ambientalistas, isso seria um prazer extra. Tenho todo o gosto em ajudar nessa causa, mas confesso que não foi esse o meu alvo. Eu sou um tipo que cresceu nos anos 70. Lembro-me de uma campanha televisiva gigantesca pedindo aos americanos que não deitassem lixo para o chão. Faz parte daquilo que aprendi quando era miúdo.
Considera um risco lançar um filme animado em que não há qualquer diálogo na primeira parte da história? Discordo. O filme está cheio de diálogos, do princípio ao fim. Mas, em vez de palavras, há sons. Nós é que não sabemos bem aquilo que eles estão a dizer, mas que estão a falar, estão. Não param de falar! Aliás, quando escrevi o argumento, todas as cenas tinham diálogo, que coloquei entre parêntesis, sabendo que mais tarde cada frase iria ser substituída por um som expressivo. Num filme animado, o Wall-E teria de ser posto na mesma categoria dos bebés e dos animais: são todos muito expressivos, são adoráveis, mas nem sempre são capazes de nos dizer aquilo que lhes vai na mente. A nossa relação com personagens assim é sempre muito poderosa.
O Wall-E e a Eve quase podiam ser um casal Flintstone: ele tem um ar bárbaro e básico e é baixote, ela é muito mais sofisticada e curvilínea... Como chegaram a essas ideias?
Mas como é que se cria um masculino e um feminino quando estamos a lidar com uma história de amor entre dois tipos de tecnologia? É muito interessante, porque uma das nossas conversas iniciais foi sobre a natureza do masculino e do feminino. O que é um e o que é o outro? Neste filme, estava fora de questão dar-lhes uma forma humana. Por isso, o que aconteceu foi o seguinte (e isto é mesmo verdade): em 1992, fui ver um concerto do Peter Gabriel - que, finalmente, fez sentido contratar para a canção que passa durante a ficha técnica final - em que havia dois palcos, um quadrado e outro redondo, ligados por uma plataforma. Quando cantava uma canção que achava mais feminina, ia para o palco redondo e, quando cantava uma canção que achava masculina, passava para o palco quadrado. Era uma maneira como qualquer outra de orientar os desenhadores e solucionar o problema. As outras decisões foram puramente tecnológicas. O Wall-E é apenas um robô primário que só foi feito para compactar lixo. Devia parecer-se com um tractor ou um cortador de relva. Ela teria de ser o oposto. Quem a fez não poupou um centavo. É o produto mais caro do mercado. É tão avançada que uma pessoa nem sequer faz ideia de como aquilo funciona. Quanto ao resto, e para ser sincero, até acho que as máquinas mais bonitas do mundo são os computadores da Apple. Queria que a Eve tivesse aquele "feel". Tinha de ser algo que fosse atractivo para um robô como o Wall-E. A Eve é tão bonita...
Aqui, na Pixar, quantas pessoas fazem parte do seu círculo mais chegado? Quem vir a ficha técnica fica com a ideia de que foi preciso um exército... É, de facto, uma multidão. Não sei como é que os outros realizadores trabalham, mas eu gosto de ter à minha volta aquilo a que chamo "the director's circle". É como um gabinete presidencial. Oito a dez pessoas têm cargos que toda a gente reconhece, desde o cenarista ao responsável pela iluminação. Depois há os desenhadores, que são os meus actores principais. Cada um deles comanda uma falange de 20 ou mais animadores. No meu caso, tenho de dirigir cerca de 250 pessoas.
A Pixar tem aquilo a que poderíamos chamar uma filosofia? Isto vai parecer forçado e simplista, mas a única filosofia de que me lembro, das conversas que tive com o John Lassiter e com o Steve Jobs, é: o que nos interessa é fazer um bom filme. Tudo o resto virá por acréscimo. Não vale a pena preocuparmo-nos com quem tem acções na nossa companhia, com filmes sobre assuntos em voga ou com prazos de entrega. O plano é simples: vamos limitar-nos a fazer bons filmes.
Mas como é que conseguem fazer sempre filmes de qualidade que o público e a crítica adoram? Há várias razões. Uma delas é que não estamos em Los Angeles. Mantemo-nos livres de qualquer pressão exterior. Ao fim do dia, quando regresso a casa, todos os meus vizinhos e amigos trabalham noutras coisas. Não vivemos apenas nesta bolha fictícia de filmes e de gente que faz filmes. Talvez por isso, quando nos apresentamos ao trabalho, estamos conscientes de que fazer um filme é algo muito especial. A Pixar é um estúdio gerido pelo John Lassiter, um artista. Não somos governados por um painel de accionistas ou por um homem de negócios. Isso permite-nos cometer erros. Enormes. Fazemos montes de erros, mas a visão e o risco são sempre encorajados. Pode não ser um método que os homens de negócios adorem, mas, felizmente, a Pixar tem um artista ao leme. Não somos mais espertos nem temos melhores ideias que as outras pessoas. Mas a verdade é que nunca temos medo, nunca fugimos e, se a coisa não está a resultar, damos tempo ao tempo, corrigimos o que está mal, até que a ideia acabe por se aperfeiçoar. Somos muito bons a dar alento.
Se a primeira impressão é fundamental, então a Pixar não podia ter recorrido a uma apresentação mais modesta ou despretensiosa. A 20th Century Fox faz-se anunciar ao som bombástico dos holofotes. A Universal exibe a sua magnitude na rotação majestática do planeta Terra. A Columbia tem uma deusa segurando a chama da liberdade criativa. A Paramount, essa, é um cume montanhoso com um halo de estrelas, intocável e intransponível. Mas a Pixar tem apenas um objecto pequenino a servir de introdução: um candeeiro branco e básico, sempre aos pulos e disposto a criar mais um episódio de caos inofensivo.
Parece incrível que tudo tenha começado com algo tão simples. Mas é verdade. O candeeiro maroto, cheio de personalidade, foi a vedeta do primeiro filme da Pixar. Ainda hoje faz parte do logótipo da empresa, visto de cada vez que o filme vai começar. No mundo da animação, havia finalmente um estúdio a dar vida mágica aos objectos de todos os dias.
Hoje, a Pixar - que começou como divisão marginal da Lucasfilm, em 1979, antes de ser adquirida por Steve Jobs, accionista principal da Apple - é um sonho de sucesso que se dá ao luxo de só colocar no mercado filmes de animação que recebem invariavelmente a admiração da crítica e do público. Tão lucrativa é a empresa que atraiu o interesse da concorrência. Em 2006 foi comprada pela Walt Disney Company, por cerca de 7,5 mil milhões de dólares. No entanto, dado que a Pixar não errou uma única vez ao longo de filmes tão diversos como Toy Story e À Procura de Nemo - ao contrário da Disney, que continua sem dar à luz algo que se veja -, é ela quem, de facto, manda no departamento animado da Disney.
Treze Óscares mais tarde, sempre aos saltos, o candeeirozinho continua a dar lições ao rato Mickey.
Foi em Emeryville que a Pixar montou a tenda, perto de São Francisco, do outro lado da baía e não muito longe da cidade universitária de Berkeley. O "campus" da Pixar tem um edifício enorme em forma de hangar, relvados com trilhos para bicicletas, esplanadas ao ar livre e dois rectângulos com areia da praia e rede para jogos amigáveis de voleibol. Há uma piscina, embora hoje não esteja por lá ninguém a esbracejar, se calhar porque a noite anterior deixou a água gelada (acho que foi Mark Twain quem disse: "O Inverno mais frio por que passei foi um Verão em São Francisco").
Quando o sol aparece, a Pixar desponta para a vida. Jovens com ar desportivo andam de um lado para o outro ou sentam-se no restaurante central em reuniões imprevistas. Os escritórios privados, alinhados e contrapostos ao longo de vários corredores cortados a direito, estão todos decorados de maneira pessoal com bonecada vária e ensaios de ideias pespegados às paredes. Arte como desporto de grupo.
O edifício é, de certa maneira, um filme imaginado e erguido por Steve Jobs há oito anos. O que ele quis fazer foi uma espécie de Universidade Pixar, um local onde criadores jovens, capazes de produzir os seus próprios filmezinhos de qualidade, fossem concretizar algo ainda melhor.
Jobs fez questão que o quartel-general servisse o credo principal: colaboração não planeada. Isso queria dizer que a sobrevivência da Pixar ia depender do encontro diário, mas fortuito, entre criativos, escritores, desenhadores, informáticos, cenaristas ou realizadores. Mas como é que um edifício consegue obrigar as pessoas a cruzarem-se umas com as outras?
Corre a piada de que, num primeiro momento, Steve Jobs pediu ao arquitecto que fizesse só uma casa de banho (o edifício tem, afinal, 12). No fim, optou-se pela ideia de uma praça central, aqui representada pelo restaurante e mesas de trabalho ao largo, sofás, estantes com livros, cafetaria, loja de brinquedos, cantinho de exposições e, claro, a casa de banho adjacente. A fachada é quase invisível, toda feita de vidro e abrindo-se para a luz exterior, mais os tais relvados e zonas de lazer.
Primeiro mandamento: olhos frescos a toda a hora. No lado oposto à entrada, na parede sólida, há auditórios e salas de visionamento com cadeirões fofos mas espartanos, um ambiente limpo marcado pelo ecrã enorme, som infalível e mesas de controlo técnico. É ali, nos lugares centrais, que os realizadores vêem os filmes ainda meio feitos. As pessoas são convidadas a comparecer e a criticar. Ninguém tem o direito de mostrar o trabalho quando já está terminado. Se está meio feito, então quer dizer que a estrutura principal já pode ser analisada. Ora, é aí o momento ideal para o criador sofrer o primeiro golpe de escrutínio. Se o trabalho for apenas divulgado aos colegas quando já está todo feito, acaba por ser uma corrida entre inferiores e superiores hierárquicos, faz e refaz, monta e desmonta, tempo perdido do princípio ao fim. Mas se a ideia é arejada enquanto está a ser produzida, o realizador pode dizer ao animador: "Melhora a abertura, dá uns toques no diálogo ali no meio e não te esqueças de apertar o final com um botão mais forte."
A ideia da praça funcionou. Tal como numa vila medieval, o pessoal é para ali que flui, naturalmente. Grupinhos aglomerados na cafetaria estão agora a discutir a composição cromática de uma cena em preparação. Toda a gente sabe que ali, na Pixar, uma ideia é imediatamente confrontada e esquartejada. Falhar é sempre possível, porque o mais importante é recuperar e seguir em frente, fazer melhor. O segundo andar tem salões de conferências, quase sempre vazios durante o dia, porque, claro, as reuniões mais férteis estão a acontecer lá em baixo, diante de uma chávena de café ou de um sumo de fruta. A transparência é absoluta. Até a escola pública de Emeryville aparece para contribuir: estudantes do 5º ano de escolaridade são convidados todos os anos. Cada um deles tem direito a fazer um filme animado com a ajuda dos meios disponíveis na Pixar.
R.H.C., em Emeryville
Artigo publicado na edição impressa de 9 de Agosto, Caderno Actual, páginas 10 a 13