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Rui Santos: O homem que dá o corpo às bolas

O futebol português não vai à bola com ele e há quem lhe chame o 'treinador de pancada'. Só lhe resta dizer que não tem medo. De nada.

José Alves Mendes (texto) e José Ventura (fotos)

Os miúdos aprontam-se, bicos das botas em riste e a bola a um passo. Uns querem fazer o golo perfeito, outros já mais de uma vez foram avisados pelos pais que o 'caracoletas', o engravatado que chega ao fim da tarde para se fingir de guarda-redes para a foto, é um alvo a abater. Rui Santos, o mais afamado e controverso comentador desportivo do burgo luso, define-se como o homem que "dá o corpo às balas". Hoje, terá de se contentar com as bolas. No relvado sintético do Mucifalense, nos arredores de Sintra, na frente daquela a que os locais chamam a "baliza de aluguer" da vedeta da SIC (de tal forma ela é usada como cenário para sessões fotográficas), o Santos da casa dá o corpo ao manifesto, aparentemente imune aos estilhaços.

Aos 48 anos, este homem recebe os louros e paga as quotas da reputação de ser "aquele que diz as coisas". Em "Tempo Extra", na SIC Notícias, discorre durante 90 minutos, à laia da sua própria jogatana, sobre o que no futebol está à vista e mal se vê, o que se esconde por mais a descoberto que esteja. Metade vê nele a voz da razão. A outra parte limita-se a ter a certeza que Rui Santos não bate bem da bola: "Esperam de mim verdade, independência e o não-alinhamento fácil perante situações fáceis", diz ele. "No fundo, as pessoas estão à espera que eu diga algumas das coisas que elas pensam."

O futebol deu-lhe tudo, incluindo o primeiro estalo: "Adorava a bola e até faltava às aulas para ir jogar. A meio de um jogo parti os dentes ao filho de um senhor engenheiro e isso valeu-me a primeira e única chapada dada pelo meu pai. Por causa do futebol..." O pai era austero, rígido q.b. e literalmente militar: "Com ele não me foi possível aprender o que era a democracia", lembra Rui, como se tivesse por máxima desculpar o mínimo.

Ainda fez quatro anos no Colégio Militar, organizava jogos e torneios e incluía nos ditos a figura do árbitro: "Não era uma figura muito presente e ser árbitro não era certamente uma vocação minha", lembra a sorrir, como se a recordação tivesse a dose certa de matreirice. Afinal, faz parte do seu profissional sustento defender que o árbitro não faz o monge. Tem uma visão simples e contundente da democracia: a dita só existe se existir oposição. É com o tio, Vítor Santos, jornalista desportivo e nome sem o qual a história do jornal "A Bola" não se escreve ou mal se imagina, que o miúdo aprende alguns dos rigores da liberdade. Às vezes pelos exemplos mais inesperados: "Pelo meu pai era informado que o almoço era cabrito assado. O meu tio perguntava-me o que eu queria comer. Tenho uma mistura sanguínea entre a austeridade, a ordem, às vezes a ordem na desordem, e a liberdade, que vem do meu tio. Um homem de letras, um homem do mundo."

A dar corda aos sapatos no balneário do Mucifalence: a bola deu-lhe tudo, até o primeiro estalo na cara

Rui escrevia ao pai longas cartas para África, onde o progenitor cumpria as comissões a que a guerra obrigava. O conteúdo era único: o andamento do campeonato e a prestação do Sporting, de que o sr. Santos era um adepto muito sério, para explicar a questão de forma suave. A carta ia em formato de crónica e, talvez já adivinhando que não havia de ter saudades do futuro por mera falta de tempo, Rui lá explicava como ia o Yazalde e outros assuntos pendentes de Alvalade. O tio recebe o toque de que o sobrinho tem jeito para a escrita. As quatro linhas estão traçadas, mas falta à saga uma grande penalidade, à moda do leão: "O meu pai voltou-se para a minha mãe e, muito agastado, desabafou 'só me faltava agora ter um filho do Benfica'. Aquilo foi para mim um momento crucial para entender a maneira como o futebol funcionava. Mais isso do que a chapada na cara".

Santos é amado, odiado, respeitado e vilipendiado todas as semanas, ao serão de domingo. Os outros seis dias servem para mais do mesmo e um novo domingo funciona apenas para que quem o ama passe a odiá-lo e quem o respeita trate de o insultar à exaustão. Vão trocando os papéis como se Rui dissesse sempre coisas diferentes. Um camarada de profissão que prefere o anonimato por "não saber até onde o gajo consegue ir", diz que "a coerência absoluta do Rui Santos só é reconhecível pelo próprio". É um dos muitos que, der por onde der, não vai à bola com ele.

Há quem se pergunte há quanto tempo Rui sabe do que anda a falar. Parece que é coisa de miúdo: "No campo, eu era uma espécie de nº10, mais de construtor de jogo à maneira do João Alves que de 10 à Eusébio. Era um organizador. Se o jogo era de 11, estava a meio-campo. Se o futebol era de salão, fazia de segundo avançado. E onde havia uma bola a saltitar, lá estava eu." A virtude estava a meio do campo, afinal: "É o único centro que interessa, mesmo que não seja o centro das atenções", ri-se.

"Apanhei o barco e lá fui eu!" Em 1976 chega o convite para trabalhar n"A Bola'. "Vais como correspondente para o Barreiro", ter-lhe-á anunciado Vítor Santos. É o começo de uma aventura de 26 anos na imprensa escrita. Cobre jogos de todo o tipo e escalão, da lama à relva, com árbitro ou sem ele, entre barrotes de madeira a fazer de balcão e fulgores de estádio europeu. Nem as cabinas têm segredos para o miúdo que se fará chefe de redacção do jornal, continuamente em campo à procura de um nome na praça: "Foi uma trabalheira desgraçada para ser visto como outra pessoa que não fosse o 'sobrinho do senhor Santos'. Acredito muito em mim, é o que é."

Abraçou a causa dos jornais num tempo em que havendo uma guerra entre o Irão e o Iraque lá iam um ou dois repórteres e se o Benfica fosse jogar a Bagdade era bem capaz de ir toda a gente. "A Bola" era um retrato do mundo, entre bilhetes postais e reportagens. Mesmo antes do 25 de Abril era por ali que se sabia do que era a vida 'lá fora': "Nunca fui de partidos", diz Santos. "Tinha ideias sobre o que significava viver no fascismo, no que isso implicava na nossa profissão, e até por influência do meu tio sempre tive a tendência de jogar à esquerda. Mantenho essas preocupações com as questões sociais, e não estou só a falar de futebol."

Faz isto muitas vezes ao longo da conversa, sair-se com uma tirada súbita, vinda de quase nada. É como se algo nele estivesse por um fio, no limiar da falta, à entrada da grande área, e não houvesse maneira de saber o que é. Do meio do campo ele remata, muito acima da barra: "Eu não tenho medo. Não tenho medo de morrer. E quem não tem medo de morrer, não tem medo." E é melhor nem ir mais longe. Gosta de desmontar mitos, em especial os que são criados à sua volta. Diz que saiu d"A Bola' quando quis e como quis ("o jornal tinha enchido a barriga e passava por uma era de deslumbramento... nem chegávamos às bancas ao mesmo tempo que os outros") e que não tem e nunca teve guarda-costas. Não há consenso sobre a matéria: "Já fui agredido, mas até houve jornais que escreveram que eu tinha contratado uns capangas para me baterem."

Sozinho em estúdio, contra alguma coisa e quase todos: Quer maior contraditório que a opinião pública?, pergunta ele

Certo e sabido, há um punhado de gente que não se importaria de lhe meter cinco ou seis bolas no corpo, já que das balas Rui diz não ter medo que se veja ou pressinta. Quanto aos processos judiciais, são mais que muitos. Qual o resultado ao intervalo? Algo parecido com uma 'abada', como se dizia ao tempo da sua meninice: "Nunca perdi um processo. A certa altura pensei que era uma espécie de estratégia, do género 'vamos lá processar o tipo a ver no que isto dá'." Continua a dar em nada, pelos vistos.

À sua maneira, nunca se recompôs da efemeridade do jornalismo impresso. Não percebe como é que quem vê o "Tempo Extra" acha que o homem foi ali parar graças a alguma bola ao solo. Talvez acredite que através da televisão se pode escrever na pedra, como no frontão de um templo grego. Pelo menos, é o frontão que ele escolheu para dizer tudo: "Sem querer generalizar, há uma relação muito promíscua entre a comunicação social e o futebol. E eu detesto isso." Quem o ouve já o sabe, de cor e a preto e branco.

No seu endereço electrónico recebe elogios, insultos, tratados de futebol e informações preciosas. Anda toda a gente a ver se adivinha qual é o seu clube: "Todas as semanas acham que eu sou de um determinado clube conforme 'carrego' neste ou naquele. Atendendo ao que é hoje a realidade dos clubes, acho que ninguém devia ser muito Porto, Sporting ou Benfica. Não é uma coisa boa. O clubismo é um sentimento de entrega que para mim não faz sentido." Santos até compara o caso à política: "É como com o esgotamento dos partidos. As pessoas afastam-se dos estádios e do futebol de que não gostam. É uma abstenção, um voto nulo. E as gentes do futebol não percebem, o que é grave."

As 'gentes', como já se adivinha, são os que estão nos debates a falar de património, de finanças, dos intermináveis 'casos'. Rui não os suporta: "Aquela gente despreza a bola, despreza o jogo." Ainda hoje crê que a base do futebol são os jovens e que sabe (melhor do que muitos, pelo menos) que a casa do futebol foi edificada a começar pelo telhado. É quando o construtor trata de desconstruir: "Se me perguntam quem vai ganhar um jogo, eu pergunto quem vai jogar, quem fica no banco, quem é o árbitro... Sei que a crítica aos árbitros pode ser fácil e cruel, mas não posso alinhar na benevolência, porque os árbitros têm no futebol um poder que mais ninguém tem."

Abre com a gente do apito a sua mais recente cruzada, um "movimento pela verdade desportiva". A começar pela utilização de novas tecnologias, como reafirmou no debate de dia 12, na SIC Notícias, em que cinco figuras 'mobilizadas' por Santos travam a mais pacata e celestial das conversas, de tal forma todos estavam de acordo em miolo e contornos: "O árbitro e o público são a minoria. A maioria está na frente do televisor. Um golo é metido com a mão e é validado na mesma. Um golo custa dinheiro, está quantificado. O futebol tem de ser visto como um desporto televisivo, consumido por milhões. Com as novas tecnologias é possível repor a verdade e confirmá-la na hora. Se há mecanismos para dar mais verdade ao futebol, porque não havemos de os usar?" Tem muita gente do seu lado, a começar por quem espera que ele diga as 'verdades': "É o meu problema. Creio que as pessoas querem que eu diga bem dos clubes delas porque têm paixão por eles. Eu não tenho paixões dessas. Nem cachecol."

Contas feitas, que diriam pai e tio da carreira do petiz? Santos, o novo, acha que ambos estariam orgulhosos: "Acho que vou chorar", diz ele, toldado por saudades que são só da sua conta. É salvo pelo gongo, o bicho que soa sob a forma de um telemóvel. Diz adeus e sai porta fora a caminho do Mucifal, onde o espera um bizarro pelotão de chuteiras em riste, o fotógrafo cá da casa e a baliza que já o trata por 'pá'. É dia de dar o corpo às bolas, como de costume.

Texto publicado na edição do Expresso de 30 de Maio de 2009