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Receber a cara, os dentes e a língua de um morto

Espanhóis realizaram na última semana operação de transplante facial inédita no mundo, ao incluir parte da mandíbula inferior.

Angel Luis de La Calle, correspondente em Madrid (www.expresso.pt)

"O paciente já se viu ao espelho, ri-se e está bem". Com este diagnóstico optimista, o doutor Pedro Cavadas (43 anos) resumia a situação do primeiro transplantado facial em Espanha, numa complexa intervenção que precisou da participação de 30 especialistas e quase 18 horas de trabalho, realizada no hospital público La Fe de Valência na semana passada. É a oitava operação deste tipo que se realiza no mundo e a primeira em que o receptor adquire também parte da mandíbula inferior, os dentes correspondentes e parte da língua. Serão precisos seis a oito meses para que se possa garantir o êxito total do transplante e pelo menos dois anos de dura reabilitação física e psicológica.

Diversas fugas de informação e alguns erros permitiram conhecer pormenores da identidade tanto do receptor como do dador da intervenção de Valência. Estas circunstâncias deram lugar a uma extensa polémica pública, porque a revelação de dados sobre os pacientes destas operações está proibida pela Lei de Transplantes. Segundo o doutor Cavadas, chefe da equipa que realizou a operação, "violaram-se todos os códigos éticos". O dador (a quem foram igualmente extraídos o coração e os pulmões para outros transplantes) era um jovem de 35 anos que faleceu num acidente de viação. O receptor foi um homem das Canárias de 43 anos, a quem o tratamento de um tumor facial tinha causado graves deformações e a impossibilidade de comer e falar. Há onze anos que se alimentava através de uma sonda ligada directamente ao estômago e a sua vida era, literalmente, nas palavras de Cavadas, "uma miséria".

As análises prévias para determinar em que momento proceder ao transplante demoraram alguns meses, tal como a preparação psicológica do receptor. Antes de aparecer o dador adequado, que devia ser do mesmo sexo que o receptor e ter características semelhantes quanto à coloração da pele e ao tamanho do rosto, o paciente foi submetido a duas intervenções prévias para identificar a distribuição dos músculos, dos terminais nervosos e dos vasos sanguíneos. A intervenção em si mesma é uma sucessão de dezenas de microcirurgias destinadas a ligar adequadamente todos os canais. No prazo de seis meses o receptor começará a recuperar a sensibilidade no rosto e a tomar alimentos ligeiros. Um longo processo de reabilitação irá ajudá-lo a falar novamente, embora com dificuldades.

Os psicólogos não prevêem que o transplantado tenha grandes problemas em aceitar a sua fisionomia. A pele e o resto dos tecidos musculares da cara do dador adaptam-se à estrutura óssea da face do receptor, pelo que não há risco de parecença física com o dador. De qualquer modo, a estabilidade emocional da pessoa que recebe o novo rosto é fundamental para o êxito da operação. A primeira transplantada facial do mundo, a francesa Isabelle Dinoire, que tinha ficado horrivelmente deformada pelas mordeduras de um cão, levou dois anos a reconhecer como sua a fisionomia reconstruída.

Pedro Cavadas e a sua equipa são pioneiros em operações de risco. Foi o primeiro cirurgião do mundo que realizou um transplante de mãos com êxito. Também mudou de lado o braço de um paciente atrofiado por uma apoplexia cerebral. Está a preparar-se para realizar um transplante de perna.

Texto publicado na edição do Expresso de 29 de Agosto de 2009