Na gíria do póquer, chama-se "all in". Apostar tudo. Foi o que fez Henrique Pinho, de 28 anos, quando no final de 2007 largou um emprego seguro no departamento de marketing de uma empresa para se dedicar em exclusivo às cartas. Na altura, a decisão preocupou amigos e família, que preferiam ver o jovem licenciado em Gestão de Empresas numa "carreira normal". Mas o mínimo que se pode dizer é que a jogada lhe correu bem.
Hoje, Henrique passa dez horas por dia em frente ao computador a jogar em casinos online frente a adversários espalhados pelo mundo. Como a maioria dos jogadores, não gosta de falar do que ganha. Diz apenas que o póquer lhe assegura um ordenado "bastante acima da média" e um estilo de vida que nunca conseguiria ter de outra forma. Mas isso é dizer pouco para quem todos os dias investe cerca de 3500 euros para jogar. Tudo livre de impostos.
"Não pago impostos nem desconto para a Segurança Social. Preferia pagá-los como toda a gente, mesmo que fosse uma grande talhada, mas não posso fazê-lo porque há um vazio legal em Portugal", explica. Henrique conhece 'colegas', jogadores profissionais de póquer online como ele, que já se dirigiram às Finanças para perguntar como podem fazer para declarar as avultadas quantias que ganham no jogo. Mas, perante o olhar incrédulo dos funcionários da repartição, a resposta que ouviram, conta, foi sempre a mesma: não há legislação aplicável.
Pedro Pais de Almeida, especialista em Direito Fiscal, garante que a questão não é tão simples. O problema é que, apesar de a lei portuguesa prever que quaisquer rendimentos sejam sujeitos a tributação, o código de IRS não está adaptado a esta nova realidade. Não há categoria que contemple quem ganhe a vida no jogo online - todo ele considerado ilegal em Portugal - recebendo dinheiro conquistado no mundo virtual e pago por empresas sediadas no estrangeiro, maioritariamente em paraísos fiscais e offshore. "Os impressos para declarar rendimentos não estão preparados. Na prática, o dinheiro não é tributado", explica.
Se não há qualquer controlo fiscal sobre os jogadores, muito menos há sobre os casinos e casas de apostas que nos últimos anos não têm parado de proliferar na Internet. Actualmente, existem cerca de 2600 sites de jogo, dos quais 1300 em língua portuguesa. E de nenhum o Estado português recebe um cêntimo que seja. Mas, nestes casos, as autoridades nacionais estão mesmo de mãos atadas. "O fisco português só pode intervir em relações económicas mantidas no país. Por isso, no actual quadro legal, não há qualquer possibilidade de tributar estes negócios, já que nenhum deles está sediado cá", adianta Pedro Pais de Almeida. Assim sendo, o especialista não tem dúvidas: vão continuar a escapar muitos milhões de euros de receitas fiscais ao Estado português, a não ser que haja uma alteração legal nesta matéria.
Segundo o Turismo de Portugal, que tutela o Serviço de Inspecção de Jogos, isso mesmo está já a ser preparado pelo Governo. A lei do Orçamento do Estado para 2009 abre caminho à tributação do jogo online, autorizando o Executivo a legislar no sentido de taxar todos os pagamentos feitos por transferência bancária a estas casas de jogo virtuais. A ser aplicada, a medida tornará mais recheadas as finanças nacionais, mas acabará por legitimar uma actividade que o próprio Estado considera ilegal. Seria como permitir um crime, desde que o mesmo pagasse imposto, queixam-se os dez casinos nacionais e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que detêm o exclusivo do jogo em Portugal. Sem querer abrir mão do monopólio, a Associação Portuguesa de Casinos (APC) pede ao Governo para seguir o exemplo da Alemanha e dos Estados Unidos e proibir todas as transferências bancárias para os operadores virtuais. Só assim seria possível pôr fim à concorrência desleal de que diz ser vítima.
É que, entre contrapartidas de exploração e imposto de jogo, é aplicada aos dez casinos nacionais, devidamente licenciados, uma taxa de 62%. Só no ano passado, tiveram de entregar às Finanças cerca de €184 milhões. "Quem paga pesadíssimas contrapartidas para ter o exclusivo do jogo, certamente não vê com bons olhos que outros exerçam a actividade sem qualquer tributação, perante a complacência de um Estado rigoroso a fiscalizar os operadores legais, mas permissivo quando se trata de combater a ilegalidade", acusa Jorge Armindo, presidente da APC.
16 mil viciados
O número de viciados no jogo está a aumentar em Portugal. Segundo um estudo encomendado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa à Universidade Católica, apresentado no início desta semana, são cerca de 16 mil os dependentes e mais de 400 mil os jogadores em risco de dependência. Entre os viciados, um quarto assume já ter tido problemas profissionais e familiares devido ao jogo. Para arranjar dinheiro para apostar nos casinos, 25% já venderam património e 18% tiveram mesmo de recorrer a agiotas. Os números impressionam, mas, ainda assim, ficam muito aquém da realidade, assegura João Teixeira, croupier há 31 anos e presidente do Sindicato dos Profissionais de Banca dos Casinos. "O estudo é muito benevolente. Há muito mais do que 16 mil viciados. Esses serão, quando muito, os que já estão em fim de linha", garante. O problema tem vindo a agravar-se desde que, em 2005, deixaram de existir balcões de identificação e barreiras físicas à entrada das salas de jogo. Já não há quem proíba a entrada e evite uma recaída dos mais de 700 jogadores compulsivos em tratamento que pediram aos casinos para não os deixarem jogar. Nem quem controle o acesso de menores. "Os patrões dizem que o negócio está tão mau que quanto mais barreiras se criarem pior", acusa João Teixeira.
262
milhões de euros é o valor das receitas brutas dos casinos portugueses entre Janeiro e Setembro
184
milhões foi quanto descontaram no ano passado para as Finanças
96,7
milhões de euros é o valor das receitas brutas alcançadas pela casa de apostas online Bwin só no segundo trimestre deste ano
Texto publicado na edição do Expresso de 24 de Outubro de 2009