Dois manuais escolares, um dossiê, um caderno, a caderneta, o estojo, as chaves de casa, dois telemóveis e a carteira. Na sua mochila às bolinhas cor-de-rosa, a franzina Ana Silva, de 11 anos, carrega diariamente mais de cinco quilos às costas.
E o peso promete aumentar com o avançar das aulas, até porque nos primeiros dias do ano lectivo há livros que ficam em casa e centenas de páginas de apontamentos ainda por escrever que hão-de vir a encher as pastas.
Mesmo assim, "já custa" e muito carregar tamanho fardo nos 20 minutos a pé que demora a chegar à paragem do autocarro. Sobretudo para Ana, que pesa apenas 36 quilos e é uma das mais pequenas da turma do 7.º A da escola Manuel da Maia, em Lisboa.
Entre os colegas, Ana não é a única a maldizer o peso das mochilas. Muitos queixam-se de dores e garantem já ter no corpo as marcas do esforço. "Às vezes chego a casa com os ombros marcados e queimados pelas alças", conta Frederico, 12 anos e 3,6 quilos de mochila às costas.
"Dói muito, sobretudo no fim do ano", corrobora Ricardo, de 13, que confessa ter tendência "para andar marreco" por causa da pasta.
Até ao ano passado, os cacifos existentes na escola - uma das apostas do Ministério da Educação para combater o problema - ainda podiam ajudar a aliviar a carga. Mas o esquecimento frequente da chave por parte dos alunos e a ocorrência de alguns roubos levaram a direcção a acabar com os armários. Sem ter onde deixar os livros, restam os ombros para os carregar ao longo dos corredores e escadarias da escola, num edifício antigo com cinco pisos.
As consequências de um problema que se arrasta há vários anos estão à vista entre a população escolar de todo o país. Segundo um estudo da Universidade do Minho (que no final do ano passado avaliou 136 alunos dos seis aos 19), dois em cada três estudantes já apresentam alterações ao nível da coluna. E mais de 70% queixam-se com frequência de dores. É que a maioria traz diariamente às costas mais do que o seu corpo, ainda em crescimento e formação, permite aguentar.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a carga máxima da mochila não deve ultrapassar 10% do peso corporal do aluno que a transporta. Ou seja, um jovem com 35 quilos, por exemplo, arrisca-se a ficar com sequelas se carregar às costas mais do que 3,5kg.
Mariana, de nove anos, ultrapassa o limite recomendado e já se ressente disso. O seu corpo, alto e robusto para a idade, pesa 42 quilos. A mochila rosa que traz aos ombros com bonecos dos Aristogatos chega aos 4,6. "À noite doem-me as costas e às vezes não consigo dormir bem por causa disso. A minha mãe diz que qualquer dia ainda tenho que ser operada porque ando toda torta", conta a aluna do 4º ano do Jardim-Escola João de Deus, em Lisboa.
As crianças podem deixar no colégio o material escolar, mas Mariana não abdica de levar para casa "os seis livros, o caderno, o estojo e o outro estojo" para poder estudar ao final do dia. O mesmo acabam por fazer muitos dos restantes alunos, alguns a pedido dos pais, que gostam de rever com eles a matéria dada antes do jantar.
Rodinhas são "coisa de crianças"
Mas mesmo sem os livros todos na mala, o peso é grande. Tão grande que a colega Inês, também do 4º ano, acredita que a sua mochila tem "aí uns 20 quilos". Não é tanto, mas para a aluna que pesa pouco mais que isso os três que carrega a tiracolo, num só ombro, dão exactamente essa sensação.
Para diminuir o esforço, há quem recorra às mochilas com rodinhas. Mas a resistência dos miúdos aos trolleys ainda é grande. "Já somos muitos velhos para as usar. Isso é para crianças. Até ao 3º ano ainda dá. Mas no 4º, nem pensar", explica João Pedro, 9 anos, aluno da mesma escola privada. A verdade é que, ao contrário do que se poderia pensar, estas malas podem ser uma alternativa ainda pior (ver texto abaixo).
A solução, defende Hilário Silva, o homem que entre 2004 e 2006, à frente da associação de pais da Escola do Canedo, lançou uma cruzada inédita contra o peso excessivo carregado pelos alunos, seria apostar na utilização dos cacifos e numa maior responsabilização dos professores.
"As escolas não vêem se um aluno entra completamente curvado e com uma mochila de 10 quilos às costas", lamenta. Nem as editoras se preocupam com o facto de metade das páginas dos manuais nunca chegarem a ser dadas ao longo do ano, acrescenta Hilário Silva, que fez estas e várias contas. Como a soma dos manuais (contando os vários volumes) e cadernos de fichas pedidos ao seu filho, quando estava no 7º ano, e que perfaziam um total de 25 livros.
O problema, diz, é que a situação piorou nos últimos anos. "À mochila e ao saco da ginástica, junta-se agora o transporte do 'Magalhães'".
Com a ajuda de uma balança digital, o Expresso pesou alunos e mochilas de duas escolas, chegando à conclusão de que, em muitos casos, o peso das pastas supera o limite recomendado pelos especialistas.
Em 2007, o Ministério da Educação regulamentou, pela primeira vez, o peso máximo que poderiam ter os manuais escolares: 550 gramas no caso da primária e 750 nos restantes anos do ensino básico (o secundário ficou de fora da lei). Mesmo assim, o elevado número de disciplinas com livros obrigatórios faz com que a carga continue a ser grande.
No caso dos alunos de uma turma do 7º ano, os oito manuais indispensáveis podem chegar a pesar seis quilos. Não contando com cadernos de exercícios, dossiês e outro material.
69
por cento das crianças e jovens apresentam alterações da coluna devido ao peso das mochilas, segundo um estudo da Universidade do Minho
72
por cento dos alunos queixam-se de dores nas costas e nos ombros, de acordo com a mesma pesquisa
750
gramas é o peso máximo que cada manual escolar do 5º ao 9º ano pode ter. No 1º ciclo, os livros não podem pesar mais de 550 gramas
Texto publicado na edição do Expresso de 25 de Setembro de 2009