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Morar ao lado da prostituição

Os vizinhos querem-se sossegados. Que não incomodem a desoras nem façam barulho noite dentro - tudo o que falta a quem tem por morada o roteiro do negócio mais velho do mundo.

Mafalda Ganhão (texto) e Luiz Carvalho (fotos)

À luz do dia, com o típico bulício da cidade em fundo, não há nada na Rua Luciano Cordeiro, em Lisboa, que chame a atenção pela exuberância. Há prédios devolutos, muitas fachadas envelhecidas de edifícios outrora vistosos a ombrear com (raros) andares renovados e um prédio recém-construído emoldurado por bandeirolas que anunciam os apartamentos em venda. Há lojas de comércio tradicional lado a lado com pastelarias de recorte mais moderno, árvores despidas de folhas ao longo de toda a via, e pelo menos duas pensões, não longe do nº 16, onde, no rés-do-chão, está instalada a sede da Junta de Freguesia do Coração de Jesus. Vê-se ainda um minimercado, uns passos abaixo está um letreiro anunciando um Coiffeur - preciosismo francês usado na década de 70 para prestigiar os cabeleireiros das mises para senhoras.

São 15 horas. Não há muita gente na rua. Sem os néons que a evidenciam, a fachada negra e quase austera do muito conhecido Elefante Branco quase passa despercebida e, mesmo para os mais distraídos, é fácil perceber quem circula em terreno conhecido e saiu apenas para comprar o pão do dia ou para beber um cafezinho. Passam alguns jovens com mochilas, provavelmente a caminho das aulas, e, mais acima, distingue-se também facilmente quem se apressa para chegar a tempo das visitas no Hospital de Santo António dos Capuchos, o olhar insistente cravado no relógio de pulso e o sinal verde que nunca mais se acende para os peões.

É à noite que o cenário muda. "Ai menina, isto a partir de uma certa hora já só está entregue aos travestis e à pouca vergonha." Palavra de moradora, 72 anos de idade e quase cinquenta a habituar-se a um movimento pouco desejado, que lhe rouba o sossego quando chega a hora de dormir e lhe envergonha a paisagem da sala de estar. "Não precisa de escrever aí o meu nome, pois não?", pergunta a mulher, a ganhar coragem. "Então eu digo-lhe tudo, que isto não é só na rua. Há por aí muitos andares cheios de 'meninas' e de brasileiros mais bonitos que muitas mulheres, a receberem clientes durante todas as madrugadas." "Quem vive nos prédios é que sofre com a confusão", acrescenta, "toda a noite os elevadores a subir e a descer, as campainhas a tocar... não há descanso."

António (o nome é fictício) sabe-o bem. O andar onde reside, na Duque de Loulé, fica entre dois patamares problemáticos. As 'meninas' e os 'meninos' que em diferentes apartamentos recebem os clientes (há pelo menos dois anos) já obrigaram os restantes moradores a tomar medidas de urgência: "Numa fase em que as coisas estavam mais descontroladas e o barulho nos obrigava constantemente a ter de chamar a polícia, chegámos a colocar um segurança privado à porta do prédio." O facto de os visitantes terem de se identificar antes de entrar demovia-os da curta estadia, mas a solução era dispendiosa e não foi possível mantê-la por mais de seis meses.

"Agora as coisas estão mais calmas", refere António, que confessa ter acabado por se "habituar a conviver" com a situação. "Não é insuportável", admite, "mas não deixa de incomodar saber que temos o prédio sinalizado em determinados sites da Internet ou ter de lidar com o constrangimento inevitável que é subir as escadas com um filho de dez anos e dar de caras com esses vizinhos de aspecto duvidoso".

Numa freguesia envelhecida, onde cerca de 25% dos habitantes tinha entre 50 e 65 anos no ano do último recenseamento, em 2001, e quase 18% estava na faixa entre os 66 e os 81, a questão ultrapassa o lado da moral. Apesar da localização privilegiada na cidade, o ambiente nocturno afasta muitos potenciais moradores. Pela Avenida Duque de Loulé, Conde Redondo e Rua Bernardim Ribeiro multiplicam-se as placas assinalando casas em venda, mas o negócio não está fácil.

José Magalhães, da imobiliária Remax, é o vendedor responsável pela comercialização dos andares do nº 55 da Luciano Cordeiro, um prédio feito de raiz, concluído em Março de 2008. Das 11 casas construídas (T2 e T3 com preços entre os 290 mil e 380 mil euros), sete estão vendidas e não se queixa da procura. "Em Lisboa, por acaso, este é até um dos edifícios no top de vendas da Remax, o que se justifica pela boa relação qualidade/preço", adianta José Magalhães. Será um caso particular, porque para o vendedor não restam dúvidas: "A prostituição na rua afecta o valor das casas. Para lá da crise, claro que ajudava ter outro ambiente para oferecer." E os compradores, o que dizem? "Em dez visitas, a questão da localização é colocada uma vez, geralmente por pais com filhos adolescentes." Quem não gosta do local, se calhar nem chega a querer ver o andar, "e tenho apenas um caso onde essa foi a razão para não se concretizar a venda", afirma. Mas é vulgar, salienta José Magalhães, "os clientes usarem a prostituição e os travestis como argumento para negociar e conseguir fazer baixar os preços".

Apesar das movimentações nocturnas, há quem não tenha razão de queixa. Maria Palmira mora no bairro há 40 anos e nunca teve problemas: "São até pessoas gentis." Talvez por ter uma natureza divertida - "levo as coisas a brincar" -, Palmira não se sente chocada com o cenário que encontra sempre que chega mais tarde do escritório, e encolhe os ombros às "taradices" de quem por ali faz negócio. "No outro dia vi por aí um quase despido, mesmo com o frio que estava, e até me ri com a minha filha, mas há uma delas - digo uma, não é? - que é muito atenciosa comigo. Mesmo que fique à chuva, dá-me sempre o lugar na paragem do autocarro."

Poucos metros acima do Elefante Branco, João Veríssimo atende um cliente na drogaria. Conhece o bairro desde os anos 60, quando para ali se mudou, e não contém um sorriso matreiro quando fala das "brasileiras". "São muito barulhentas", diz, insistindo no sorriso, "mas não me incomodam". Medo de sair à rua o senhor João não tem e, "para falar verdade" até se sente "mais resguardado" quando o Elefante Branco está aberto aos clientes. Os dois assaltos que tem no balancete comercial aconteceram sempre em noites de domingo para segunda-feira, quando a casa está fechada, portanto sem seguranças à porta.

Maria B. trabalha e vive há décadas na freguesia. Está habituada a ouvir os desabafos de moradores menos condescendentes: "Falam do ruído, dos preservativos deitados nas papeleiras, muitas pessoas têm medo de andar na rua." Também ela reside num andar com vista para o 'pecado' e sabe o que é não conseguir dormir por causa do barulho de tão pouco convencional vizinhança: "Eu não tenho medo e saio à rua a qualquer hora, para despejar o lixo ou passear a cadela. Mas há sempre muita confusão. Os travestis são agressivos e são frequentes cenas de violência entre eles."

Longe vão os tempos em que Maria alugou "por um balúrdio" a casa que escolheu para começar a sua vida de mulher casada. "Era tudo tão diferente...", recorda. O cenário mudou. Foram morrendo os mais velhotes, as casas acabaram fechadas a degradar-se ou nas mãos de muitos estrangeiros, "a quem são subalugados quartos a 300 e mais euros mensais", conta. "Mesmo depois, com a prostituição feminina, o ambiente não era tão mau. De há quatro ou cinco anos para cá é que foi o descalabro", remata.

Tanto assim é que, há cerca de dois anos, foi feito um abaixo-assinado para acabar com os travestis e transexuais na zona. "Deu em nada", desabafa Maria com um encolher de ombros, daí nunca mais ter havido outra iniciativa para tentar resolver a situação.

As autoridades garantem que não lhes é fácil actuar. Se por um lado a prostituição não é um crime, por outro, grande parte das queixas assumem a forma de denúncias telefónicas anónimas, por causa do barulho nos prédios ou distúrbios da ordem pública. Se é chamada, a polícia intervém, pede a identificação dos indivíduos, certifica-se da legalidade da permanência dos cidadãos estrangeiros, mas os problemas voltam sempre na noite seguinte. E na outra, e na outra e na outra...

Texto publicado na edição do Expresso de 7 de Fevereiro de 2009