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Juntos (só) na música

Lado a lado, como num sidecar, Maria João e Mário Laginha são cúmplices para a vida. A música uniu o que o amor separou. (Veja vídeo no fim do texto)

Sílvia Gonçalves (texto), Luiz Carvalho (fotos)

Com uma voz que parece agarrar todos os tons, Maria João toma conta do palco. Passeia os dedos pelo glamoroso vestido amarelo. O olhar detém-se na orquestra, a Big Band do Hot Clube. Atravessa a plateia imensa. Volta-se depois para ele, absorve a composição que bem conhece. Todo o corpo se agita. A voz acompanha as notas arrancadas ao piano. Aproxima-se, estende-lhe a mão. Logo depois um beijo. Mário retribui o gesto no olhar. Voz e piano respiram a um mesmo tempo. Vinte e seis anos depois, Maria João e Mário Laginha seguem em uníssono um caminho sinuoso, feito de amor, conflito e regresso. A um território musical onde a partitura abre espaço ao improviso. Para lá do jazz, o regresso. A uma cumplicidade que não se explica.

Foi naquele início da década de 80, em 83. Maria João, então com 27 anos, tinha-se estreado há pouco nas aulas de canto, na escola do Hot Clube. A descoberta da voz era coisa recente. O mais antigo clube de jazz português propunha-lhe a criação de uma banda. O contrabaixista, António Ferro, sugere o nome de Laginha para o piano.

Acontece o primeiro disco, "Quinteto Maria João". Seguiu-se o segundo, "Cem Caminhos" (em 85), e pouco depois o afastamento de Mário Laginha. "Eu já estava mal habituada, tinha este compositor incrível. Senti-me abandonada. Mas depois tive muita sorte, porque fui para a Alemanha e pude esticar-me, conhecer outros músicos."

Mário explica a opção tomada. "Tinha a ver com uma fase da vida. E uma das coisas que eu na altura não suportava era que tínhamos ensaios no Hot às 11 da manhã. Eu vinha de Colares, chegava às 11 e ela à uma! Comecei a achar que não dava. E havia um projecto, o Sexteto de Jazz de Lisboa, que me estava a atrair."

O reencontro entre os dois aconteceu em 91, com o disco "Sol", do grupo Cal Viva. O início de um trajecto em duo teve início pouco depois, em 94, com o disco "Danças". É também nessa altura que começa uma relação amorosa que haveria de durar oito anos. E o momento mais dramático nesta história veio a ser a separação. O que nunca se traduziu em afastamento. "Foi horrível. Na altura achei que devíamos ter feito luto. Uma pessoa quando se separa de outra não continua a vê-la. E nunca fizemos. Era um desespero", conta Maria João. "Na semana a seguir fomos para a Argentina tocar", recorda Mário.

E como se gere uma carreira profissional a dois após o fim de uma relação? É Mário Laginha quem recorda esse período. "Eu desviava-me das coisas que ela mandava. Chegou a acontecer em Viena de Áustria, antes de um concerto. Ela disse 'eu não toco', e eu 'eu vou para o palco, tu se quiseres vem'. Esse concerto correu incrivelmente bem." As discussões sucediam-se e, segundo a cantora, só a música permitiu uma continuidade. O pianista acrescenta. "A empatia não deixou de existir. O que era incrível é que no meio da confusão íamos para o palco tocar e continuava a haver aquela química."

Olga Carneiro, a agente que os acompanha há dez anos, fala do que os aproxima. "São muito diferentes, essa é uma das maiores virtudes da dupla. Têm uma complementaridade criativa muito rara de encontrar. Ela talvez seja mais intuitiva e imprevisível, o Mário é mais metódico e racional."

"Somos diferentes mas não antagónicos. Muito complementares. O acto criativo, em que ela está a fazer uma letra e eu uma música, funciona muito bem. Ela é mais tipo uma torrente, 'é aquilo, aquilo e aquilo!' E eu digo 'aquilo e aquilo sim, aqueloutro não!', e ela acaba por aceitar", diz o compositor.

E, tantos anos depois, a falta de pontualidade de Maria João continua a gerar atrito? "Isso continua", diz Laginha. Entre risos, recordam a única vez que perderam um avião por causa da cantora. "Íamos para Genéve, via Zurique, em económica. Mas eu arranjei maneira e fomos no avião a seguir, directamente para Genéve, e em business", conta Maria João. A que se deve tamanho problema com a gestão do tempo? "I'm an african lady. A minha mãe era a mesma coisa. É algo que me incomoda muito."

Juntos percorreram boa parte do mundo em digressão. Mário recorda o dia em que viajavam em Moçambique, enfiados num bimotor, com 45 graus, que João, a convite do piloto, acabaria a pilotar. "Eu já só imaginava que 'deixem lá a Maria João experimentar' era a última coisa que se ia ouvir na caixa negra".

No final de 2008, e a assinalar os 25 anos desde que gravaram o primeiro disco, saiu "Chocolate", o 12º trabalho do duo, que conjuga originais com o regresso aos standards. Maria João vive uma insatisfação permanente na gravação dos discos. "Ela tem um lado de insegurança. E às vezes fica instável nas gravações dos discos. Não houve disco nenhum sem zangas pelo meio." Com excepção do último. "É que eu tenho um namorado", explica a cantora. "Estava muito feliz. Tinha lá os dois comigo. Mas mesmo assim foi dramático. Só que nas outras vezes despejava tudo no Mário. E agora despejei para cima de outra pessoa também", conta.

Rodeada pelos espelhos do camarim, Maria João rende-se às emoções. "Que sorte que eu tive. É ele ter o mundo inteiro na alma e no coração. Ter este virtuosismo. O que nós fizemos durante este tempo todo foi normal. Às vezes estamos bem, depois zangamo-nos, reconciliamo-nos. Nuns dias faz sol, outras vezes faz chuva". E remata. "Nós gostamos muito um do outro. Isto é mesmo a sério, é amor puro e duro, é amor para sempre."

Para lá do duo, ambos estão envolvidos noutros projectos, a solo ou com outros parceiros. Difícil é olhar para o lado, em palco, e o outro não estar lá. Maria João teve essa experiência em 2007 quando lançou "João", o disco a solo. "Melhorou a nossa relação porque eu também passei a fazer outras coisas. Deixei de estar tão dependente dele. Mas ao princípio custou-me muito, era horrível, não estava lá ele."

Mário tem o sonho de fazer com a companheira "um disco só de canções, canções com letra e sem improviso". A insegurança dela manifesta-se: "Vai haver tanta choradeira nesse disco". Ele insiste. "Ela acha que quando não faz solos não faz o seu statement musical. Ela é cantora suficiente para fazer um statement sem solo". Afinal, "é uma cantora única no mundo, uma grande intérprete". Ela sorri, termina o chá, arruma o vestido amarelo. Dali a uns dias estarão novamente em palco, num qualquer ponto do mundo. É então que voz e piano se fundem num só.

Texto publicado na edição do Expresso de 7 de Fevereiro de 2009