Para uns é mais uma moda, para outros uma brincadeira, e há ainda aqueles para quem é a salvação. A hipnose - esse estado de olhos fechados e mente aberta que não é sono, nem sonho, mas um estado alterado de consciência - tem raízes ancestrais e entra nas práticas mais diversas praticadas nos nossos dias, dos truques de ilusionismo à terapia médica. Num e noutro caso é sempre preciso que o condutor saiba induzir e aumentar a sugestionabilidade da pessoa que se entrega nas suas mãos. Esta também tem de se deixar abstrair e aderir ao que lhe é pedido. Mas nem sempre as palavras mágicas resultam e nem todos são hipnotizáveis.
Fomos falar com o padre Armando Marques, que é hipnólogo nos tempos livres e que gosta de fazer da hipnose de palco "um mistério", e com o psiquiatra Mário Simões, que pratica a hipnoterapia como técnica de "fim de linha", quando mais nada resulta a não ser chegar à raiz psicológica do problema. Um e outro dizem que é preciso "o dom" para dominar a técnica. Acreditamos, por isso decidimos experimentar as suas 'habilidades'.
Uns são mais hipnotizáveis do que outros
Psiquiatra Mário Simões
Nem todos são hipnotizáveis. Isto é um facto. Eu, pelo menos, sei por experiência própria que não o sou. Ou, pelo menos, não o fui. No início da sessão, o hipnoterapeuta disse-me: "Vamos por aí, sem sabermos onde vamos dar." Pôs na aparelhagem uma música new age, colocou-me uma manta por cima e iniciou o processo de relaxamento tentando conduzir-me para um "estado alterado de consciência", no qual não entrei. A manta fazia-me calor, o ar condicionado fazia-me tossir e eu não me conseguia abstrair. Não fiquei concentrada na sua voz suave nem aderi ao "processo de autodescoberta" de que falara durante a entrevista que precedeu a sessão de hipnose.
Nessa conversa, Mário Simões - um dos gurus da hipnose em Portugal - dissera que "todos somos hipnotizáveis", mas admitira que "só 20% das pessoas tem um grau de hipnotizabilidade elevado e 20% um grau relativamente baixo". Eu devo fazer parte deste último grupo.
"Tem de haver sempre uma boa relação de confiança entre o paciente e o hipnoterapeuta", explicara. Mas para se entrar nesse "campo terapêutico" (criado pelos dois) é necessária disponibilidade do paciente, capacidade de auto-sugestão e de indução e sugestionabilidade de quem conduz.
Ao longo de hora e meia deitada no divã do consultório em tons pastel do professor Mário Simões, continuei a ouvir os barulhos que vinham da rua e a cogitar sobre as questões que me colocava. Estava longe de entrar no tal "estado alterado de consciência" que me dissera ser o da hipnose.
Pareceu-me ridículo o pedido para imaginar e relatar uma história na qual eu me pudesse perder na associação de palavras para depois chegar a algum lado. E não! De facto, não consegui falar com o meu eczema... apesar de o terapeuta ter insistido e de eu ter tentado.
Explico melhor: o eczema era o objecto da sessão previamente definido. É preciso um motivo para se avançar para uma hipnose exploratória. A pele é um órgão de reacção emocional ao stresse. "A pele e o cérebro fazem parte do mesmo embrião", disse o médico. E, no meu caso, o stresse manifesta-se em erupções cutâneas na ponta dos dedos das mãos.
A hipnose é uma técnica terapêutica ancestral, para alguns um megaplacebo, que entrou no campo das neurociências no século XIX. É potencialmente aplicada em perturbações psicossomáticas, que se manifestam em problemas de pele, em fobias, em dores crónicas, como as enxaquecas, ou em dependências, como o tabagismo. A experiência e os estudos deste psiquiatra de 60 anos - que já soma metade da vida de dedicação à hipnose - levaram-no a verificar que "não é uma panaceia" e que "tem limitações, como todas as técnicas psicoterapêuticas ou cirúrgicas". Mas, salientou, "tem capacidade para resolver situações que não têm outra solução". Ou, pelo menos, para "diminuir as recaídas, o uso de medicamentos ou o absentismo".
Salvação na hipnose terapêutica?
Para Mário Simões, o fascínio pela técnica cujo nome tem origem no deus grego do sono Hypnos surgiu no final do curso de Medicina. A partir de então, não mais deixou de "estudá-la, investigá-la e usá-la" na sua prática clínica privada.
Desmultiplica-se entre o consultório, o Hospital de Santa Maria e as aulas na Faculdade de Medicina de Lisboa, no Instituto Abel Salazar, no Porto, e na Escola Superior de Enfermagem de Ponta Delgada.
O psiquiatra lamenta que não seja possível recorrer mais ao uso da hipnose terapêutica nos hospitais, na medida em que esta técnica "permite alterar a relação com o paciente e a confiança no tratamento". Em Santa Maria, há profissionais de saúde que a utilizam nas unidades de tratamento de dor ou de queimados, "mas não é uma prática institucional". E ele próprio nunca a utiliza no hospital. "Não há condições", explicou na entrevista. "É preciso um espaço tranquilo, onde não se seja interrompido e em que esta abordagem psicoterapêutica seja integrada com igual valor de outras." Outra questão "é o tempo: a consulta dura entre 15 a 20 minutos e uma sessão levaria uma hora e meia."
Já lhe passaram pelas mãos, sob hipnose, "mais de 300" pacientes na clínica privada. Muitos chegaram-lhe no "fim da linha". Ou seja: "São pessoas que já tentaram tudo. Já foram ao médico, compraram uma caixa de comprimidos, tentaram psicanálise ou outras técnicas, sem resultado, e vêm procurar a hipnose clínica." Mas, apesar de atender muitos casos destes, confessou estar longe de pôr de lado os fármacos ou outras técnicas.
Claro que, como referimos no início, há quem entre mais facilmente no que definiu como "um estado diferente, que não é um sono, nem um sonho. É um estado de sonolência, como quando estamos a adormecer ou a acordar" e no qual podemos abrir os olhos quando quisermos. Quando a hipnose é mais profunda, "é muito mais difícil de acordar por vontade própria", a não ser que seja "sugerido algo que vá contra a ética ou a moral" da pessoa, esclareceu o hipnoterapeuta. E podem surgir "falsas memórias tanto do passado como do futuro".
O número de sessões depende de caso para caso. Mas certo é que esta técnica não é rápida nem barata. Uma sessão pode custar entre 70 a 140 euros e durar entre 45 minutos a duas horas. Depende se é "uma hipnose directiva ou uma hipnose exploratória, em que se faz uma regressão de memória e se procura as conexões com a suposta causa do problema". Foi esta que tentou comigo, sem sucesso.
Claro que há a capacidade de indução. E esta depende da abertura e criatividade do próprio. Na opinião de Mário Simões, "o paciente vai até onde o terapeuta for". Este pode arriscar, apesar de "só controlar 80 a 90% da situação", e acentuar as sensações. Contou-nos então a história de uma paciente "com um sentimento de inadequação" e tendências suicidas a quem colocou a mão no pescoço enquanto esta descrevia que se estava a afogar, "para tornar a situação mais real". Ela acabou por reagir e dizer: "Não, eu não vou desistir."
Levantei o sobrolho. E Mário Simões esclareceu: "A hipnose moderna não é a mesma de há 30 anos." E prosseguiu: "Muitos terapeutas têm uma malinha com uma toalha, uma corda, uma almofada, um pau pequeno, umas gotas de água", ou seja, "objectos para potenciar as vivências". Ele garante que não tem a dita malinha. Porém, "quando necessário", usa os objectos que tem "em cima da secretária". O importante é "uma certa liberdade criativa no processo terapêutico".
Quanto ao meu caso, deixou a porta aberta: "Na próxima vamos lá." Eu penso que o melhor serão mesmo umas boas férias.
Por amor a Deus e à hipnose, no palco e no altar
Padre Armando Marques
Na Igreja, não há confessionário. O padre Armando Marques não gosta de caixas fechadas e prefere ouvir os paroquianos numa conversa olhos nos olhos. Diz ter o dom de saber ouvir e orientar. É tudo uma "questão de comunicação". "Costumo dizer que sou padre no palco e artista no altar", confessa aquele que é tão conhecido como Armando Marques, o padre, como Marcos do Vale, o mágico que hipnotiza pessoas por esse país fora.
Para ele, "a hipnose é um diálogo entre duas pessoas inteligentes: uma que se deixa orientar e outra que orienta". E rapidamente me convida a entrar no jogo. De pé, à sua frente, fecho os olhos e deixo o corpo relaxar. "Um, dois, três" - e dá a ordem. Adiro à sugestão e balanço para um lado e para o outro como uma árvore ao sabor do vento. Sorrio enquanto o faço. Consciente. A brincadeira dura dois ou três minutos. Estive apenas sugestionada?, questiono. "A hipnose é um transe em que a pessoa entra numa espécie de sono. É um relaxar de toda a sua actividade neurológica, em que a pessoa se deixa sugestionar para determinada situação", explica.
Armando Marques gosta de usar "o dom", que tem vindo a aperfeiçoar ao longo de mais de 30 anos e que chama de "intuição por tudo o que se relaciona com o mistério do Homem". Por isso, não é de estranhar que admita que no acto da confissão há "uma espécie de hipnose subjacente", no sentido em que "ajuda ao início da caminhada".
Na pequena sala-escritório da residência paroquial, onde vive, em Aguada de Baixo, concelho de Águeda, conta-nos a sua história. No espaço apertado cabe uma secretária, três cadeiras e uma estante repleta de bibelôs de santos e de livros, onde não falta "O Sol da Terra", do cardeal Ratzinger.
O mais novo (e único rapaz) de oito filhos de uma família humilde de Vale Maior (Viseu) encontrou no seminário a saída para um futuro melhor. Estudou Teologia e Psicologia e redescobriu-se como ilusionista e hipnólogo quando dava os primeiros passos no sacerdócio.
Vira uns colegas do seminário a fazer umas brincadeiras que lhe "faziam um embaraço na cabeça" e dedicou-se a aprender mais. Tinha já três anos de padre quando resolveu enveredar pelo espectáculo, para angariar algum dinheiro para a paróquia de Cacia (Aveiro), onde pregava então. Anunciou o espectáculo, mas quando o público se apercebeu que era ele o ilusionista a sala ficou quase vazia. Ainda hoje há paroquianos que acham que ele se devia remeter à sacristia. "Os mais puritanos", diz. Mas nunca ninguém da cúpula da Igreja o proibiu de praticar as suas artes. "Quando temos um dom, temos a obrigação de o pôr cá fora. Senão, seríamos incompletos", defende. E garante: "Não o utilizo para fins menos ortodoxos."
Mestre na hipnose-espectáculo, tem a carteira profissional de artista de variedades desde 1974 e foi dos primeiros a aderir à Associação Portuguesa de Ilusionismo. Assume que a sua principal actividade é a de padre e que a de mágico nunca interferiu com a profissão eclesiástica, nem mesmo quando tinha um espectáculo no Algarve e no dia seguinte tinha de celebrar missa em Avelãs de Caminho ou Aguada de Baixo. Foram muitas as directas nos anos de ribalta, depois de ter ganho por três vezes o primeiro prémio de hipnose no Festival de Magia da Figueira da Foz.
Pôr as pessoas a fazer de polícia sinaleiro
Aos 67 anos, já não dá para tanta agitação. O Verão está aí, e a agenda vai ficando cheia, com espectáculos marcados para arraiais e festas de santos padroeiros. Cobra um cachê de 750 euros, mas diz que metade dos espectáculos são de graça... para obras de beneficência.
O número apoteótico de Marcos do Vale é sempre o da hipnose. Depois de preparar o público com truques em que encolhe cartas, multiplica dinheiro ou tira lenços da cartola, avança para o momento em que leva as pessoas para uma outra dimensão. Sempre "utilizando as suas próprias capacidades", que ele não gosta de "pôr as pessoas a fazer coisas contra a sua moralidade".
Escolhe "as mais susceptíveis" e coloca-as a fazer de polícia sinaleiro ou a dançar. O espectáculo termina com um grupo de pessoas em palco a formar uma orquestra. De olhos fechados, obedecem às ordens do professor Marcos do Vale e 'tocam' um instrumento. "A multidão é a coisa mais fácil do mundo de sugestionar", diz.
Armando Marques confessa que também já se atreveu fora do campo lúdico e entrou no terapêutico, sem cobrar nada. E "só uma ou outra vez quando indicado por algum médico (...) senão, não me largavam a porta", ironiza. Resolve casos como "um trauma, uma gaguez, um medo de multidões ou uma claustrofobia". Mas "não soluciono os problemas de ninguém", acrescenta. "Oriento, levando a pessoa a perceber que tem capacidades para os resolver."
Para ele, a hipnose é "uma osmose entre o corpo e o espírito". E está esta osmose presente nos milagres? Cauteloso, admite que "muitos dos milagres do Evangelho são coisas psicológicas" e que "Jesus era um pregador poderoso que comunicava que a falta de saúde interior levava à falta de saúde exterior". Porém, lembra que "os milagres são também intervenções com um fundamento de fé". E há que não misturar as coisas e não fazer confusão. Milagres são milagres e, esclarece, enquanto "na hipnose terapêutica se diz a verdade, na lúdica de palco a gente faz dela um mistério... e um divertimento".
Texto publicado na edição do Expresso de 12 de Julho de 2009