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E o meu sofrido português, como fica?

Leia o comentário de Jaime Bernardes a propósito do novo Acordo Ortográfico.

Jaime Bernardes*

"A minha pátria é a língua portuguesa," - disse e escreveu o nosso Fernando Pessoa. E sem querer, mas querendo, esse passou a ser o lema da minha vida, por razões que explicarei mais tarde.

O importante é que em 1957 eu trabalhava em Estocolmo como redator e locutor de Rádio Suécia, num programa diário para o mundo de língua portuguesa em ondas curtas. O programa de 45 minutos era repetido em três horários, um para Portugal, outro para o Brasil e outro para a África Portuguesa. E o programa era feito por dois portugueses e dois brasileiros que, antes de cada gravação, discutiam todos os dias quais as palavras mais normais e supostamente mais compreensíveis tanto para portugueses como brasileiros. Desde 1957 até hoje, não podem imaginar como é sofrido o meu português.

Nasci em Lisboa, na freguesia da Lapa. Vivi oito anos em Estocolmo e estou desde 1965 no Rio de Janeiro, cidade que, em 1958, escolhi para morrer - o mais tarde possível! Mas posso acrescentar que quase todos os anos, por deveres de jornalista, escritor, tradutor e editor, sempre voltei a Portugal e permaneci em Portugal, no mínimo, por algumas semanas.

Acontece que para os portugueses eu passei a falar à brasileira, enquanto que para os brasileiros continuei a falar à portuguesa. Lá e cá, erro crasso. Na maioria das vezes, levei o caso para a brincadeira e disse que o meu português era "atlântico," de uma região entre os dois países, talvez o Mar de Sargaços. Na realidade, o português falado é lisboeta, portuense, algarvio, alentejano, beirão, carioca, paulista, baiano - existe até um dicionário de baianês! - gaúcho, pernambucano, e assim por diante.

No fundo, como português, ainda me emociono ao pensar com enorme orgulho que sempre senti, dos nossos ancestrais que conseguiram fazer prevalecer a nossa língua de norte a sul, de um país unificado, o Brasil, maior do que a Europa e os Estados Unidos da América.

Isto por que, tendo visitado quase todos os estados do Brasil - assim como visitei todas as províncias de Portugal - nunca passei por dificuldades em me fazer entender em português, além daquelas que todos têm, antes de apurar o ouvido e entrar em sintonia.

Convém frisar que o português é uma língua comparativamente difícil como pude verificar em reuniões no serviço internacional na Rádio Suécia onde se sentavam suecos, ingleses, americanos, franceses, alemães, e um leque de representantes da língua espanhola e seus derivados sul-americanos. Nós, brasileiros e portugueses, podíamos entender todas as línguas ali faladas, mas quando falávamos em português, uns com os outros, ninguém conseguia compreender o que dizíamos. Até mesmo com os espanhóis precisávamos apelar para o nosso "portunhol" para nos fazermos entender.

As peculiaridades no falar de cada região não é privilégio do português. Na Suécia, os habitantes da Escânia, no sul do país, falam com expressões e sotaque diferentes dos estocolmanos, tanto ou mais do que as diferenças entre lisboetas e algarvios. Na Alemanha, o "hoch Deutsch" é considerado o melhor alemão e é da região de Hannover e muitos lhe chamam o Fernseher Deutsch, ou seja, o alemão da televisão. O "platt Deutsch" das planícies do norte, à volta de Hamburgo, já é diferente e, ao sul, nas montanhas, o sotaque é bávaro.

Segundo o filólogo sueco Bertil Moberg que escreveu A Língua e o Homem, o linguajar é um sistema de comunicação primário, espontâneo, e sujeito, permanentemente, a modificações. Por exemplo, no caso do português, o açougue é uma palavra nascida em Portugal que hoje se usa quase exclusivamente no Brasil para indicar o talho, palavra esta que os portugueses acharam por bem adotar do francês numa época em que Paris era a "cidade da luz" no final do século XIX e o nosso Eça de Queiroz era acusado de usar muitos galicismos, em contraposição ao nosso Camilo Castelo Branco, considerado como exemplo de purista da língua.

De qualquer forma, o novel acordo ortográfico vem atender, pelo menos, aos que entendem que a língua portuguesa é a sua pátria. E são apologistas da simplificação. E todos concordam que os filólogos, por vezes, seguem uma antiga regra: se pudermos complicar, para que simplificar!

Não faz muito tempo, os brasileiros, na maioria descendentes de portugueses, faziam questão de dizer que falavam e escreviam brasileiro. Por outras palavras, estavam apostados ou, pelo menos, pareciam apostados em criar uma nova língua - a língua brasileira. A idéia podia ser considerada como um resquício ainda do grito de Independência. Felizmente, o Brasil mudou e a Academia Brasileira de Letras, também. Em 1967, começaram por tirar da língua escrita um montão de acentos desnecessários, embora tenham ido buscar e instituído o trema, um lapso inexplicável para quem, inteligentemente, passou a considerar, em definitivo, o português como a língua do Brasil.

Em 1965, durante os festejos dos 400 anos do Rio de Janeiro, consegui criar um suplemento especial do Jornal do Brasil, de oito páginas, com o patrocínio de empresas sueco-brasileiras. Escrevi quatro páginas de texto "vendendo" a Suécia para os brasileiros e ainda me lembro, fotograficamente, do revisor do jornal, elogiando a minha prosa e dizendo que tinha feito apenas uma alteração: na expressão "plêiade de figuras proeminentes," ele tinha trocado "plêiade" por "galeria!" A troca, certamente, foi motivada por um profundo sentimento de impotência. Onde já se viu um revisor que revisa e não altera nada? Mais tarde, no mesmo jornal, vim a encontrar o meu revisor preferido, Marcos de Castro - só corrigia o que estava errado e raramente sugeria alterações que submetia à minha aprovação.

Mais tarde ainda, já fundada a minha editora, a Nórdica, resolvi lançar no Brasil o escritor português Santos Fernando, colaborador do Diário Popular e do semanário brasileiro, O Pasquim. O livro escolhido por mim foi A Sopa dos Ricos. E lá fui procurar no texto as palavras "desconhecidas" dos brasileiros. Fiz uma lista inicial de 50 palavras e expressões e passei a importunar todos os meus amigos brasileiros de vários níveis de conhecimento, perguntando se compreendiam o seu significado. Uns não conheciam certas palavras, mas havia outros que as conheciam. E assim a lista ficou reduzida a quatro expressões, uma delas - de roldão - que acabei por encontrar no dia em que o livro ficou pronto. Nesse dia, fui ao lançamento de outra obra, a do meu amigo, o poeta Carlos Drumond de Andrade, com apresentação de outro amigo, Millôr Fernandes. E, em determinada altura desta apresentação, uma expressão, literalmente, de roldão, saltou aos meus olhos - ela mesmo!

Ao cumprir o ensino básico de quatro anos em três e dada a negativa do então ministro da educação de Portugal em autorizar que eu prosseguisse os estudos por causa da idade prematura, passei um ano inteiro sem ir à escola, mas dedicado às letras. Com nove anos, li dezenas de livros das pequenas bibliotecas de quatrocentos títulos cada, do Jardim da Estrela e do Jardim da Parada, na área de Lisboa onde vivia. Mais tarde, estudando economia, comecei a trabalhar cedo, aos 16 anos, no Banco de Portugal como aprendiz de tipógrafo, uma profissão que, na época, 1951, exaltava quem a tivesse. Os linotipistas de então eram os verdadeiros revisores ortográficos da língua e a sua interferência era preponderante, principalmente, nos jornais. E antes de terminar o serviço militar, em 1955, eu já estava a trabalhar para o jornal Record de Manuel Poças, para o Diário Popular onde entrei pela mão de Ricardo Ornelas e no Norte Desportivo sob a direção de Alves Teixeira. Enfim, continuava lidando com letras.

Entretanto, com outras letras, também. Graças aos meus estudos de francês e inglês, ao voltar da tropa, fui parar no departamento de correspondência com o estrangeiro no Banco de Portugal. E nos jornais, quando havia algum estrangeiro para entrevistar, os chefes mandavam me chamar.

Portanto, é preciso entender que o meu português é pessoal e transmissível, isto é, recebeu uma enorme gama de influências e poderá, eventualmente, influenciar outras pessoas.

Costumo dizer que, apesar de todas as influências transmissíveis, ainda existe o chamado gosto pessoal. Se pusermos dois gêmeos, educados pelos seus pais, seguindo os mesmos cursos, nas mesmas escolas, e tendo os mesmos contatos, ainda assim eles viriam a usar expressões diferentes para dizer as mesmas coisas, expressões que para uns seriam certas e para outros seriam erradas, considerando que os termos de comparação seriam os seus, pessoais, os de Lisboa, do Porto, do Rio de Janeiro ou de São Paulo.

Como disse Martin Luther King que entrevistei em exclusivo para a primeira página do Diário Popular, quanto ele recebeu o Prêmio Nobel da Paz, em 1964, I have a dream! E o meu sonho é o de ver esse Novo Acordo Ortográfico ser mais um passo a favor da união entre brasileiros e portugueses, como irmãos que são, em torno da sua língua comum, uma instituição permanente da nossa pátria, como diria Fernando Pessoa.

O meu sonho é também ver os formadores de opinião, principalmente, os editores, revisores e filólogos, seguirem o princípio de que é melhor simplificar do que complicar. No caso dos filólogos e das suas academias, se "fim de semana" se escrevia durante décadas sem traços de união, para que colocá-los agora? Se "meia-noite" sempre foi meia noite, porque mudar? Se "por que", sempre foi "porque", porque mudar? Se "certa forma" de escrever sempre foi uma certa forma de escrever, porque mudar?

E para os editores e revisores, escritores e tradutores, jornalistas e comentaristas, eu diria para nunca se esquecerem de que cada um tem a sua forma pessoal de escrever e de falar, que se não estiver errada, está certa: mais ou menos elegante, mais ou menos clara, mais ou menos rica em conteúdo, mas certa.

E a todos gostaria de fazer agora uma simples pergunta:

E o meu sofrido português, como é que fica?

*Escritor, tradutor, consultor editorial e jornalista. Português há muito radicado no Brasil.