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Debate ideológico?

Filipe Santos Costa

Houve um tempo em que Ferreira Leite se queixava de que o PS tinha roubado as bandeiras ao PSD. Eram os primeiros tempos de Sócrates, que prometia as reformas que o PSD não tinha feito. Três anos depois, se alguém se pode queixar de bandeiras roubadas é o PCP e o BE.

No debate quinzenal, o PM bradou contra os mercados com "uma regulação totalmente permissiva, práticas abusivas e uma ganância com proporções históricas", e apontou o dedo aos "apóstolos do Estado mínimo e do mercado desregulado".

O que aconteceu entre os dois momentos? A mais grave crise financeira mundial desde há décadas e - pequeno detalhe - o maior crescimento dos partidos à esquerda do PS desde o PREC. Precisamente os partidos que denunciavam a política "neo-liberal" do Governo, enquanto Ferreira Leite se lamentava por o PSD ficar sem bandeiras.

A dimensão da crise pode ter apanhado o Governo de surpresa, mas a dimensão da esquerda há muito que fez soar as campainhas de alarme no PS.

Quando, no debate, Sócrates jurou defender o papel do Estado na sociedade, desafiando a direita a "rever as suas posições", houve quem sorrisse: finalmente, ideologia! É discutível que dois ou três lugares comuns sobre "ganância" e "estado mínimo"­ façam um debate ideológico.

Mas, em vez de perder tempo a ler Keynes ou Hayek, que ajudariam a pôr as coisas em perspectiva, Sócrates faz o que faz melhor: aproveita o ar dos tempos. Pragmático, o primeiro-ministro que lançou as reformas que os ditos "neo-liberais" gostariam de ter lançado, ataca-os, agora que o tempo não está para liberalismos.

Só a esquerda lhe deu troco no "debate ideológico". "Agora que quer sacudir a costela liberal, ficaria muito bem suspender o Código de Trabalho", disparou Jerónimo. "Veja só o descaramento! É o Estado minimíssimo!", bradou Louçã, quando Sócrates o informou que os 200 funcionários do novo 'call-center' da Segurança Social têm contratos "sem termo" com uma empresa privada.

À direita, nem sombra de debate ideológico. Só propostas concretas para aliviar o aperto das empresas e das famílias. Tudo muito pragmático. Como Sócrates.