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A chama que se apaga

Há cada vez mais casais que deixam apagar o fogo do desejo. Conseguem os casamentos resistir sem sexo?

Cândida Santos Silva

As suas palavras são roucas, como se se recusassem a sair cá para fora. Uma lágrima teima em repousar no canto do olho, não seca nem chega a descer pela face. Sara, chamemos-lhe assim, raras vezes falou do segredo com que se habituou a viver há mais de oito anos. Esta é uma história verídica, feita de silêncios, que obrigam a que os nomes sejam fictícios. Sara e Jorge são um casal perfeitamente normal. Casados, dois filhos, carreiras de sucesso, boa casa, saudáveis, bonitos - uma vida feliz. Mas este casal, como tantos outros, tem afinal na intimidade um pormenor que os distingue. "Não fazemos amor há mais de seis meses. Não sei bem porquê, simplesmente não nos apetece", confessa Sara. Uma situação que não se reduz aos últimos tempos. Na verdade, há vários anos que Sara e Jorge se entendem em todos os aspectos menos na cama. "Repare, nós damo-nos bem, gostamos um do outro, não estamos zangados ou à beira do divórcio. Só que não temos apetite para o sexo."

A que se deve esta situação que se arrasta há tanto tempo? Sara dá as respostas convencionais: o trabalho, os filhos, a falta de tempo, o cansaço apagam o desejo. "E depois é uma bola de neve: quanto menos se faz, menos apetece fazer. Acho que perdi o jeito, estou gorda e feia, sei lá... E ele também não me procura, por isso deixo-me estar assim", conta. "Quando me deito na cama, a minha principal preocupação é evitar qualquer contacto físico. Um pequeno toque com o pé, uma mão nas costas, qualquer coisa destas pode ser lida como uma sedução, e isso é tudo o que eu menos quero." Mas, bem vistas as coisas, o problema parece ser mais fundo. "A verdade é que o sexo nunca foi fantástico entre nós. Desde sempre, mesmo enquanto namorávamos, parece que não encaixávamos bem, nunca foi uma loucura." Ambos tiveram vidas sexuais com outros parceiros, pelo menos Sara ficara plenamente satisfeita nas suas anteriores relações. "E ele também, acho eu", adivinha. Adivinha, porque na verdade foram poucas as vezes que ambos se sentaram para falar sobre este assunto. Nunca procuraram ajuda nem nunca se empenharam verdadeiramente em mudar a situação. "Prefiro não falar do assunto. Habituei-me a viver assim. Acho que não preciso de sexo, e ele pelos vistos também não." As coisas deterioraram-se de tal forma que, nos últimos tempos, só têm relações duas ou três vezes por ano.

Um número baixo quando comparado com a esmagadora maioria dos portugueses, que, embora não façam sexo todos os dias, fazem-no várias vezes por semana. Quem o revela é o estudo "Episex dos Portugueses", coordenado por Nuno Monteiro Pereira, feito para avaliar as disfunções sexuais dos cidadãos nacionais residentes em Portugal Continental. Nesse estudo fica-se a saber que cerca de 50% dos portugueses praticam sexo pelo menos duas vezes por semana, enquanto 27% o fazem três ou quatro vezes no mesmo período.

Fazemos menos sexo?

Mas se Sara e Jorge pensam que o seu problema é único, estão muito enganados. A verdade é que dados do mesmo estudo revelam também que 7,3% dos portugueses praticam sexo menos de uma vez por mês e que para 6% das mulheres e para 3% dos homens o sexo não tem importância nenhuma na sua qualidade de vida.

Mas o que significa isso? Há demasiada gente assexuada para quem o sexo não tem significado algum ou casais como Sara e Jorge para quem a chama se apagou? Os terapeutas que estudam e tentam ajudar os casais que os procuram justificam a falta de sexo com a escassez de tempo, a vida agitada dos dias de hoje, ou até mesmo com a fasquia colocada bem alta pelas revistas femininas ou por uma sociedade em todos os aspectos muito sexualizada.

A verdade é que a falta de desejo é o principal problema que leva os casais ao divã da terapeuta sexual Marta Crawford, que neste momento apresenta na TVI 24 o programa semanal "Aqui Há Sexo". Nas suas sessões surgem casais de todas as idades para quem o sexo passou a ser um problema. O mesmo se passa nas consultas de Nuno Monteiro Pereira. "Quando vejo chegar ao consultório pela primeira vez um casal jovem, das duas uma: ou vêm queixar-se da falta de desejo, e então trata-se de casos quase sempre ligados ao consumo de ecstasy, uma droga altamente destruidora da líbido, ou então entram por aqui dentro angustiados porque um dos elementos do casal, normalmente a mulher, está desinteressada do sexo." Nalguns casos, os casais vão mantendo os casamentos por causa dos filhos, dos interesses económicos ou das aparências e procuram no exterior outros parceiros para a actividade sexual.

Mas também há gente precavida. Foi o caso de um jovem que recentemente se dirigiu à consulta de Marta Crawford para enveredar por uma terapia sexual mesmo antes de surgir qualquer problema. "Ainda na semana passada tive um paciente que decidiu procurar ajuda antes de ir viver com a namorada, pois sabe que a seguir à fase da paixão, em que tudo é fantástico, passa-se normalmente para uma sexualidade mais normalizada, em que já não há sexo com tanta intensidade nem tanta frequência."

Mas, afinal, por que motivo se seguem aos meses desenfreados de sexo frequente anos de mornas relações? "Tudo se deve à produção de oxitocina", diz Nuno Monteiro Pereira, andrologista e terapeuta sexual. Uma droga poderosa produzida pelo organismo na fase da paixão e que inebria, aumentando, e muito, a actividade sexual. O problema está quando essa fase passa. A produção de oxitocina não dura mais do que seis a oitos meses. "Quando as pessoas não sabem lidar com isso, criam mecanismos de defesa ou entram num falso jogo que cairá por terra daí a algum tempo", salienta Marta Crawford.

Ana e Filipe Gonçalves não têm tabus em contar a sua história. Dizem que viveram meses tórridos no estio da paixão. No casulo dos lençóis, falavam horas a fio, faziam amor, falavam outra vez, faziam amor e dormiam, mas muito pouco. Arrebatados pelo calor do deslumbramento, o mundo lá fora pouco interessava. Chegar atrasado ao emprego, não ter horas para comer, esquecer de telefonar à família e aos amigos pouco significava. Era ali, entre quatro paredes e em sessões de sexo contínuo, que se sentiam realizados. Quando decidiram viver juntos, Ana e Filipe Gonçalves conheceram verdadeiramente as peculiaridades um do outro. Penetraram nos dois mundos, e essa familiaridade tranquilizou-os. O aumento do conhecimento mútuo também assinalou uma menor cerimónia e constrangimento. Porém, este à-vontade, que constitui um traço aprazível da intimidade, é também um anti-afrodisíaco com provas dadas. Com o passar do tempo, descobriram entre eles filões de ouro mas também falhas tectónicas. Cinco anos depois de partilharem a casa, os sonhos e os problemas, Filipe desabafa: "As coisas vão bem. Gostamos de viver um com o outro. Ela é linda, divertida e inteligente. Amo-a com todo o meu ser. Mas não há sexo."

Diálogo é aliado do desejo

Ter uma relação afectuosa e dialogante é na maior parte das vezes um grande estímulo para o desejo sexual. A confiança que acompanha a proximidade emocional permite soltar as rédeas do apetite sexual. Ironicamente, os terapeutas dizem também que uma boa intimidade pode nem sempre contribuir para uma boa vida sexual. Esther Perel, autora de "Amor e Desejo na Relação Conjugal", livro publicado em Portugal pela Editorial Presença, escreve que a sua experiência como terapeuta familiar e de casais lhe diz "que o aumento da intimidade emocional se faz muitas vezes acompanhar de uma diminuição do desejo erótico". E acrescenta: "Quando a intimidade redunda em fusão, o que estorva o desejo não é a proximidade a menos, mas a proximidade a mais. O que pode tornar a relação asfixiante e suscitar claustrofobia." Queremos proximidade, mas não tanta que nos sintamos presos nas suas malhas. É o peso desse envolvimento que muita gente não consegue suportar, reduzindo a vida debaixo dos lençóis a quase nada. O truque está em preservar alguns aspectos da vida longe da vida do outro. A distância constitui um requisito prévio para qualquer aproximação.

A ligação erótica e emocional gera uma proximidade que pode tornar-se asfixiante, suscitar claustrofobia, ser sentida como intrusa. Queremos conhecermo-nos, mas não tanto que nos sintamos presos numa teia que amarra e cerceias as vontades. Para levar o desejo para dentro de casa, precisamos de repor a distância que tão arduamente nos empenhámos em anular. "No auge da excitação sexual, ter um certo grau de egoísmo pode ajudar a manter por bons e longos anos o interesse sexual", revela a terapeuta americana. A intensidade da paixão carnal pode desencadear o medo de sermos tragados. "Poucos têm consciência destas correntes contrárias no exacto momento em que se manifestam", alerta Perel. O que sentem é um impulso para se afastaram logo após o orgasmo, com o súbito desejo de ir comer um pão com queijo ou acender um cigarro. Qualquer pensamento errante é bem-vindo. "Em momento nenhum se representa melhor a passagem da união ao afastamento do que no fim de um acto sexual", conclui Esther Perel.

Mas também há pessoas incapazes desse egoísmo. Filipe deparou-se com o incómodo problema da perda de desejo sexual em todas as relações íntimas que teve. Cada vez que se instalava o bloqueio, ele lia-o como sinal de que já não amava aquela mulher. O contrário, porém, é que era verdade. "Era por amá-la tanto que desenvolvia um sentimento de responsabilidade e deixava de conseguir apreciar a busca descontraída do êxtase erótico", contou-lhe o terapeuta sexual a que recorreu.

Depois de anos a fio em que Ana e Filipe não se entendiam na cama, ele decidiu procurar ajuda de um profissional. Foi a solução que encontrou depois de Ana lhe ter sugerido a meio de uma sessão de cinema: "Se agora me deixasses, interessava-me sexualmente por ti." O sexólogo a que recorreu usou de várias tácticas para voltar a atiçar o fogo da paixão. Num primeiro momento proibiu-lhes o contacto físico. Nem beijos, nem massagens, nem festinhas. Nem nada. Ao perturbar o equilíbrio da sua relação harmoniosa mas sexualmente nula, o terapeuta esperava introduzir um momento de choque e confronto: sem isso, o desejo não tinha maneira de vir à tona. Ao fim de várias consultas e depois de uma acesa discussão, voltaram a praticar sexo como antes, desenfreado e bom para ambos.

É isso também que Marta Crawford faz muitas vezes com os casais que a procuram. "As pessoas vão-se desinteressando do parceiro, tomam a relação como um dado adquirido, e o sexo passa a ser mais uma tarefa para cumprir quando houver tempo." O problema está na falta dele ou na disponibilidade que os casais vão tendo ou guardando um para o outro. "Não se pode partir para o sexo quando faltou tudo o resto: disponibilidade, amabilidade, carinho, atenção. Muitos casais olham para o sexo como algo penoso, como se fosse uma tarefa mais a cumprir. E não tiram de todas as outras obrigações tempo e disponibilidade para o afecto."

Com demasiada frequência, os casais instalam-se nos aconchegos do amor e deixam de atiçar a chama do desejo. Esquecem que o fogo precisa de ar. Ora, com tudo o que um casal nos dias de hoje tem de cumprir - carreira, tarefas domésticas, família, filhos, trânsito -, pouco tempo e paciência sobra para o outro, e esse pouco nem sempre é suficiente. "Por vezes, o tempo que dispõem nem basta para que o casal fale sobre o assunto, dialogue sobre o que os afecta, sobre o estado da relação e a satisfação ou não das necessidades sexuais."

Falsas expectativas

Os portugueses também têm aquilo a que Marta Crawford chama de "dificuldade em criar um espaço de intimidade positivo". No início da relação, as pessoas não são totalmente verdadeiras e criam expectativas aos seus pares que depois não conseguem cumprir. "Constroem as relações pelo lado espectacular. Durante a conquista, não se importam de dar, quando isso não é um discurso verdadeiro, pois mais tarde também vão exigir e nem sempre vão conseguir cumprir as falsas performances a que habituaram o seu par." Na terapia, ao criar-se um espaço com um terceiro elemento que não toma partido e onde se aborda tudo o que falha e o que falta, quase sempre as coisas voltam normalmente ao lugar. "Tenho casos em que os casais se voltaram a apaixonar", relata a terapeuta com mais tempo de antena para falar sobre sexo da televisão portuguesa. Já a experiência clínica de Nuno Monteiro Pereira leva-o a olhar para os factos com maior ponderação: "Há pessoas com pouca líbido, há pessoas assexuadas, há pessoas para quem o sexo não diz nada. E aí não podemos intervir." Isso seria criar disfunções onde elas não existem. O segredo para essas pessoas está em encontrarem uma parelha semelhante. E isso, por vezes, é como jogar na lotaria. Calha a uns, mas nem sempre àqueles que precisam.

Texto publicado na edição do Expresso de 25 de Junho de 2009