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20 perguntas sobre as invasões francesas

Algumas das questões em foco num seminário internacional, promovido a 28 e 29 de Março, em Lisboa, pelo Instituto de Estudos Superiores Militares.

1. Qual o objectivo da invasão comandada por Junot, em Novembro de 1807?

Formalmente, as tropas francesas vêm fazer cumprir o Bloqueio Continental decretado por Napoleão no ano anterior e que obrigava Portugal a fechar os seus portos aos britânicos. Um conferencista espanhol, o comandante Blanco Nuñes, chamou a atenção para outros objectivos: apossar-se da frota de guerra portuguesa para compensar as perdas infligidas pelos ingleses na batalha de Trafalgar, assegurar o domínio do estratégico porto de Lisboa e capturar a família real portuguesa, à semelhança do que viria a suceder à espanhola, de forma a legitimar um governo pró-napoleónico.

2. Como se explica o sucesso das tropas francesas?

É sabido que as forças invasoras chegam a Lisboa esgotadas e mal equipadas. Contudo, um convidado francês, o tenente-coronel Thierry Noulens, sublinhou que Junot jogou com factores que, na guerra, são tão importantes como as armas ou a logística: a velocidade e a surpresa. A chegada a Abrantes por uma estrada considerada impraticável por um exército surpreendeu toda a gente. E a rapidez com que se movimentaram até Lisboa foi ainda maior: quando os franceses chegam a Sacavém, estava o embarque da família real ainda a ultimar-se

3. As forças portuguesas poderiam ter reagido à invasão?

Teoricamente, sim porque, conforme reconheceu o tenente-coronel Noulens, o Corpo de Observação da Gironda era formado por recrutas recentes, mal alimentados, esgotados por uma marcha de muitas centenas de quilómetros e com poucas munições. Contudo, os franceses tinham uma reputação de invencibilidade até então nunca beliscada. E, em 1801, a invasão franco-espanhola conhecida como Guerra das Laranjas (e que é hoje vista como uma invasão preliminar francesa), pusera a nu a debilidade das defesas lusas.

4. A partida da corte para o Brasil foi uma fuga?

Não. Correspondeu à execução de um plano de contingência já estudado desde 1640, no caso de ameaça estrangeira à capital. Para Blanco Nuñes, a retirada da corte privou Napoleão da possibilidade de legitimar a substituição da casa reinante por um príncipe por si nomeado.

5. Com a partida da corte, o poder caiu na rua?

De alguma maneira, sim porque o vazio de poder gerado pela saída da elite político-militar favoreceu a emergência de uma série de pequenos poderes locais que, sobretudo a partir da Primavera de 1808, com o começo da inssureição anti-francesa, começaram a ter em milícias e grupos de guerrilha o respectivo braço armado. O historiador Fernando Pereira Marques, da Universidade Nova de Lisboa, chamou a atenção para levantamentos populares violentos em 1808, primariamente virados contra os símbolos do poder do estado, desde cartórios a prisões, com perseguições a corregedores ou comerciantes ricos, com o pretexto de serem afrancesados. E o seu colega António Matos Ferreira, da Universidade Católica, lembrou que o advento de alguns padres-guerrilheiros prefigurava a Maria da Fonte a três ou quatro décadas de distância. Ao reorganizar as forças portuguesas a partir de 1809, Beresford irá reprimir e punir alguns destes excessos locais.

6. Que consequências teve o licenciamento das tropas portuguesas?

Os oficiais mandados compulsivamente para casa e os antigos regimentos de milícias e ordenanças dissolvidos por Junot serão a espinha dorsal dos grupos de combatentes que se constituirão a nível local para combater os invasores. Fernando Pereira Marques considerou esta medida "um erro francês" e comparou-a a erro idêntico agora cometido pelos EUA no Iraque.

7. Junot ocupou efectivamente Portugal entre 1807 e 1808?

Em termos militares, não. Como sublinhou o tenente-coronel Noulens, o general francês nunca teve forças suficientes para fazer a quadrícula do território. Para norte do Douro e para sul do Tejo, a presença militar francesa foi mais simbólica que real, dependendo do apoio das forças espanholas que haviam acompanhado a invasão de 1807. Quando se iniciam os levantamentos armados, a única coisa que Junot consegue fazer é mandar colunar armadas como as de Loison e Kellerman para atacar as cidades insurrectas, mas "uma vez afastadas, tudo voltava ao princípio".

8. Porque se malogrou essa primeira invasão?

Ainda segundo Noulens porque, entre outras coisas, os franceses não tinham vindo com um projecto político claro, nem haviam conseguido ganhar a população para o seu lado. A este propósito Fernando Pereira Marques citou uma carta de Junot a Napoleão onde dizia que a Casa de Bragança estava tão desprestigiada junto do povo que este aceitaria qualquer príncipe nomeado pelo imperador, "contanto que não fosse espanhol"...

9. Qual a influência do levantamento espanhol de 2 de Maio de 1808 em Portugal?

Decisiva, quer no plano simbólico, quer no plano estratégico pois, conforme referiu Blanco Nuñes, a partir dessa altura as guarnições espanholas de que os franceses dependiam para controlar o sul e o norte de Portugal, "pura e simplesmente dissolveram-se, regressando aos poucos ao outro lado da fronteira".

10. Espanhóis e portugueses bateram-se de forma diferente?

Ainda segundo o mesmo conferencista, com excepção da batalha de Baylen, os espanhóis perderam todos os combates convencionais com os franceses. Mas as forças regulares derrotadas regressavam sempre como grupos de guerrilha, cada vez maiores e mais activos, perturbando as comunicações e não dando descanso aos franceses. Um adjunto do rei José, irmão de Napoleão por este colocado no trono de Madrid, dizia que a guerrilha custava aos franceses "cem homens por dia". Em contrapartida, Beresford refundava o exército português segundo a doutrina britânica, fazendo dele uma força combatente efectiva.

11. Que papel teve a guerrilha em Portugal?

Em Portugal, e como sublinhou o major Pires Lousada, as forças irregulares nascidas dos levantamentos de 1808 acabarão por ser integradas na estratégia global traçada por Wellington que nomeará oficiais como o coronel Trant para fazer a ligação com as milícias e ordenanças da Beira, de forma a que estas, ao seu nível, colaborassem no desgaste e flagelação das forças invasoras.

12. Qual o significado da defesa da Ponte de Amarante, durante a II Invasão Francesa?

O facto de uma força mista de regulares e irregulares comandada pelo general Silveira ter conseguido defender a travessia do Tâmega durante quase duas semanas deu a Wellington um tempo precioso para preparar a reconquista do Porto. Segundo o major Lousada, Silveira actuou como um chefe guerrilheiro, ao retirar quando os franceses forçaram a ponte para reaparecer dias depois a ameaçar os franceses em Entre-os-Rios. Já Beresford quis levar o general português a tribunal militar por não ter defendido a posição até ao último homem como uma força convencional deveria fazer segundo os rígidos códigos daquele comandante.

13. Qual o segredo do sucesso do comandante anglo-luso, duque de Wellington?

O historiador Huw Davies, da Academia de Defesa Britânica, explicou que tão ou mais que um estratega, Arthur Wellesley foi um hábil negociador político e um mestre na recolha e tratamento das informações. Estes diversos talentos tinha-os desenvolvido na Índia, onde comandara forças britânicas num contexto adverso e complexo. A habilidade do comandante britânico na negociação com as autoridades portuguesas e a forma como foi preparando a população para os sacrifícios que uma política de terra queimada como a levada a cabo durante a III Invasão francesa, inevitavelmente traria, foram determinantes. Wellington praticava já rudimentos de estatística operacional na estimativa das baixas inimigas, utilizando regras como a de que "por cada oficial morto há que contar com 15 soldados abatidos".

14. Beresford foi um herói ou um tirano?

É inegável, diz Fernando Pereira Marques, que o marechal William Beresford, não só repôs as forças portuguesas em estado de combater, como, a partir de 1816, lhes aplicou uma reforma que prevaleceria durante quase todo o séc. XIX, "tão marcante como a do Conde de Lippe, cem anos antes". Contudo a biografia deste oficial mostra aspectos pouco cavalheirescos. Forçado a render-se aos espanhóis em Buenos Aires (1806) desrespeita a palavra dada e refugia-se num navio britânico. Muitos historiadores britânicos consideram desastrosa a sua actuação na batalha de Albuera, em que as forças britânicas tiveram perdas tremendas. Mas continuará sempre a merecer a confiança de Wellington. A partir de 1814, envolve-se cada vez mais na política portuguesa e, em 1817, a forma brutal como reprime a conspiração de Gomes freire de Andrade e outros oficiais vale-lhe um ódio crescente que culminaria na revolução liberal de 1820 e no seu afastamento.

15. Como reagiu a Igreja portuguesa às Invasões Francesas?

Após as primeiras declarações conciliadoras do episcopado, destinadas a evitar atritos com o invasor, a igreja vai evoluir para uma posição diferente que, como sublinhará António Matos Ferreira, passará pela legitimação do levantamento popular e, inclusivamente, pela abolição da proibição de os eclesiásticos poderem pegar em armas. Mas o quadro será cada vez mais complexo pois, "se é fácil pintar os franceses como ímpios, já é menos simples fazern esquecer que os britânicos são herejes". Com a abertura dos portos do Brasil aos britânicos, o território português torna-se pela primeira vez palco de concorrência entre diferentes religiões cristãs, o que não deixará de causar atritos com o Vaticano.

16. Qual o papel da maçonaria?

António Ventura, historiador da Faculdade de Letras de Lisboa, desmontou a tese simplista segundo a qual os maçons eram a quinta-coluna francesa. Havia lojas e pedreiros-livres, tanto no exército francês como no britânico ao mais alto nível, incluíndo Wellington, Nelson, Junot, Soult ou Masséna. Entre os maçons portugueses houve colaboracionistas e patriotas, "como entre os eclesiásticos, os comerciantes ou os nobres..." O Grande Oriente Lusitano nunca aceitou nomear Junot seu grão-mestre, nem substituir o retrato do príncipe D. João pelo de Napoleão. E, durante a Setembrizada, ponto alto da repressão sobre os maçons portugueses, acusados de colaboracionismo, em 1810, uma parte dos degredados para os Açores, uma vez lá chegados, foram reembarcados para Inglaterra em navios de guerra britânicos.

17. Que lições se tiram da batalha do Buçaco?

Este combate sangrento entre os anglo-portugueses e os franceses em Setembro de 1810, durante a III Invasão, prova, na óptica de Huw Davies, duas coisas: a eficácia das forças conjuntas britânicas e portuguesas e "a estupidez que era tentar enfrentar os franceses fora da protecção das Linhas de Torres Vedras".

18. Porque falhou a máquina militar napoleónica na Península?

Segundo o tenente-coronel Noulens porque os pressupostos em que se fundamentava a sua acção falharam na Península Ibérica: incapacidade de obter abastecimentos a partir da terra conquistada e advento de um elemento novo, a guerra popular, de inspiração nacionalista, até então desconhecida na Europa ocupada por Napoleão.

19. A guerra na Península foi determinante na derrota de Napoleão?

Sim, sobretudo, a partir do momento em que a "Grande Armée" se perde nos gelos da Rússia, em 1812. A Península torna-se num factor de desgaste para os franceses e numa escola de cada vez maiores sucessos para os britânicos, primordialmente apoiados em Portugal.

20. O povo português esteve em armas?

Sem qualquer dúvida. Diversos conferencistas, entre os quais o major Lousada citaram um número impressionante: uma população de três milhões e meio de pessoas conseguiu, durante seis anos, levantar em armas 110.000 homens, fora os irregulares. Ou seja, mais de três por cento da população total, um número nunca mais atingido até hoje.