Expresso 50 anos

Fonte de Letras: uma livraria em Évora com os olhos abertos para todos os mundos

Nasceu em Montemor-o-Novo há 23 anos. Para sobreviver, mudou-se para Évora há dez. Na Fonte de Letras, Helena Girão Santos quer dar a conhecer a literatura portuguesa, mostrar o trabalho de autores menos conhecidos e de pequenas editoras. E diversificar os olhares sobre o mundo.

Ana Baiao

No número 8 da Rua Vasco da Gama, em Évora, as portas de ferro com vidro abrem-se para um espaço repleto de livros. Atrás do balcão, quase submersa em cartazes, papéis variados, frases de autores, marcadores de livros, está Helena Girão Santos. Livreira há mais de duas décadas, leitora toda a vida e publicitária até trocar Lisboa por Montemor-o-Novo e ali abrir a Fonte de Letras, vive entre autores e histórias, lutando por manter viva a livraria independente que foi beber o nome ao chafariz da vizinhança da cidade.

Abriu a Fonte de Letras com uma amiga, ambas publicitárias sem experiência na área, ambas com raízes familiares em Montemor, onde não havia nenhuma livraria. Aproveitaram um apoio financeiro do então Instituto Português do Livro e das Bibliotecas destinado a abrir livrarias em cidades onde não existissem. “Era leitora e frequentadora de livrarias, mas não sabia nada disto. Na altura ainda fomos para a Ler Devagar [livraria em Lisboa] fazer um estágio e perceber como é que as coisas funcionavam”, conta Helena. Sentamo-nos numa das pequenas mesas metálicas do espaço, onde tanto se pode servir um café, como acolher um cliente ou um autor. “Era uma coisa que eu achava que ia gostar, que me fascinava, e de facto assim é, ao fim de 23 anos”, diz.

Passou da publicidade para a paixão dos livros em 2000. Helena já leva 23 anos como livreira
Ana Baiao

Tomar o pulso a esta livraria é tomar o pulso à vida fora das vias rápidas. Há 11 anos teve de sair da primeira morada. Agarrou nos livros e nas estantes e mudou-se de armas e bagagens para Évora. “Em 2013 foi quando começou a grande crise financeira, já não era possível ter uma livraria em Montemor. Deixou de haver clientes. Muitas pessoas ficaram sem emprego e deixou de haver tantas pessoas de passagem. Montemor ficava num sítio muito estratégico no país, iam à livraria pessoas do Porto a caminho do Algarve, pessoas de Lisboa. Paravam em Montemor, descansavam e conheciam a livraria. A Fonte de Letras mudou para Évora à procura de mais público para poder sobreviver”.

Aos poucos, foi passando a fazer parte da cidade. Procura os turistas nacionais e estrangeiros, mas também quer criar novos públicos na região. Continua de portas abertas neste que é um negócio difícil: “temos de ir a muitas frentes, todas dão um bocadinho, mas nenhuma dá muito”, diz Helena. Nas livrarias independentes o caminho faz-se pela oferta, diferente, pelo atendimento, pelo espaço. “A Fonte de Letras tem livros que outras livrarias não têm. Há mais três ou quatro livrarias em Évora, umas mais fora da cidade, como a FNAC, outras mais dentro, não faz sentido eu ter a mesma oferta que os outros têm. Também é isso que é uma livraria independente, poder escolher aquilo que queremos e não serem as editoras a ditar o que vendemos. Nas livrarias independentes fazemos essa diferença porque gostamos de dar a conhecer autores menos conhecidos, que também são bons e existem, e porque não temos de andar todos a ler o mesmo e a pensar da mesma forma. Isso é muito importante”, sublinha.

O espaço da livraria convida a estar
Ana Baiao

Um trabalho de paixão, que se distingue também por outras ofertas surpreendentes. Como a máquina de brindes, onde por 50 cêntimos se faz rodar um torniquete e, em vez de chocolates, sai um poema de um autor português. “Num papelinho temos de um lado o poema em português e do outro o poema em inglês. Serve para dar a conhecer os poetas portugueses e é uma coisa que também tem graça. Saem muitas bolinhas porque também passam muitos turistas”. Uma vez tentaram roubar a máquina. Apareceu uma vizinha a dizer que ia um homem pela rua abaixo com a máquina da poesia debaixo do braço. Helena chegou a tempo de a recuperar.

Em junho, viajou até Espanha. À Feira do Livro de Madrid, onde integrou o stand da RELI – Rede de Livrarias Independentes, a máquina de poemas fez-se com tradução em castelhano e foi um sucesso: “as pessoas fazem fila para tirar poemas, leem, filmam e chamam os amigos. É uma forma de dar a conhecer os autores”. E de abrir um sorriso nos dias.

Outra das surpresas que tem na Fonte de Letras é o Blind Date. Trata-se de livros que são vendidos embrulhados, sendo a compra baseada numa descrição. Ali estão eles, bem à entrada da livraria, embrulhados em papel pardo e cordel. “Blind Date com um romance – Procuro: Leitor ávido para compromisso sério com o romance de estreia daquele que viria a afirmar-se como um dos nomes maiores da literatura universal”, lê-se num dos volumes dentro da caixa.

O blind date com livros é um sucesso: os clientes compram sem saber o quê e confiam
Ana Baiao

“É um livro que está escondido e há uma dica sobre o livro, mas não se diz o que é. As pessoas às vezes perguntam: ‘mas são livros bons?’ Claro, na Fonte de Letras são todos livros bons. Mas é um encontro às cegas com um livro, porque a pessoa não sabe o que é que está lá dentro. Vende-se imenso, tem imensa saída. Também tem a ver com o público. As pessoas confiam”, conta Helena Girão Santos.

É destes pormenores que se faz a diferença. Também na oferta de pequenas editoras, que faz questão de ali ter e que muitas vezes não encontram espaço nas grandes cadeias. “São editoras interessantes, é bom mostrar, é bom divulgar, é bom que esses autores e os escritores existam. Sim, temos muito esse trabalho conjunto com as pequenas editoras que editam bons livros, [como a] Elsinore, Sistema Solar, as mais pequenas como a Averno, a Língua Morta, ou a Maldoror”, aponta. Nestes 23 anos que leva de livreira já viu várias acabar. E outras começar, faz questão de dizer.

Na livraria, estas editoras estão em expositores dedicados. Nas prateleiras, há a organização por temas, e Helena, que não perdeu a veia publicitária, vai fazendo uns destaques apelativos como “Mulheres fora da prateleira” ou “Socorro, o meu filho adolescente não lê”. A livreira sorri: “as pessoas são sensíveis a essas coisas. As mães sentem ‘isto é comigo’. É aquela parte do trabalho, da comunicação que trouxe da publicidade”.

Fonte de Letras tem uma completa seção infantil
Ana Baiao

Não é pelo preço que uma livraria independente se afirma, até porque a luta com as grandes cadeias, que compram em quantidade, é desigual. “Há muitos anos que se pensa fazer uma central de compras para as livrarias independentes, para conseguir ganhar vantagens, que a grande escala permite, mas ainda não temos. A RELI é uma associação muito jovem, tem dois anos. Por isso, cada livraria faz os seus pedidos e as suas encomendas. Como são menos quantidades temos menos desconto. Muitas vezes é terrível. Neste momento, em que as editoras fazem vendas online com descontos maiores do que fazem às livrarias, é muito difícil conseguir competir com isto”, diz a livreira.

Apesar disso, Helena segue confiante: “Eu percebo as pessoas que precisam de mais barato, de rapidez. Mas, no fundo, é aderir à causa. Todos juntos havemos de fazer uma diferença no que se pensa, no que se lê, no que se faz, na forma de estar no mundo”.

Helena Girão Santos na Fonte de Letras
Ana Baiao